Plac, plac, plac, plac, plac, e vou ouvindo este barulhinho ao subir a escada do Palácio Ceia, para mais uma reunião de trabalho. Depois de ter passado a manhã na Companhia Nacional de Bailado e subido a pico o Chiado, estou à beira de um ataque de nervos e de um colapso de pernas. Os meus pés defendem já a eutanásia e o direito ao suicídio e vou-me perguntando que raio será que nos leva a nós, mulheres, a submeter-mo-nos a este flagelos físico? Seria o instinto de fêmea e a necessidade de agradar ao sexo oposto? Mais um acto de auto-afirmação perante a sociedade machista? Fetiche? Fantasia? Por acaso já me perguntei o que terá levado o meu ex-marido a guardar tão ciosamente alguns dos meus melhores sapatos altos enquanto eu tentava reunir o estritamente necessário a sobreviver com a mala da roupa e duas filhas nos braços! Afinal, se no reino animal, em regra, são os machos e não as fêmeas que são considerados os espécimes mais bonitos, mais emplumados, sem terem de fazer qualquer sacrifício - e, acreditando na versão cristã da história, quem fez uns fez outros - porque será que, na espécie humana nos esfragalhamos para inverter os papéis?
Não esqueçamos que, até há pouco tempo, as mulheres não podiam votar. Só em 1893, na Nova Zelândia, o voto feminino começou a ser aceite. Nos jogos olímpicos da antiguidade, as mulheres, em pé de igualdade com os escravos e os não-gregos, não tinham permissão para participar dos jogos (aliás parte desta discriminação continuou na primeira olimpíada da era moderna em 1896, quando as mulheres não participaram e até mesmo a primeira participação feminina nos Jogos que aconteceram em 1900, em Paris, gerou polêmica entre os intelectuais da época).
Décadas atrás havia o espartilho que espremia a mulher e amontoava fígado, estômago, intestino, rim, baço num raio de 10cm2 e tudo o mais que houvesse nas redondezas, fazendo com que tudo que fosse comido ou bebido ficasse num dilema danado: a comida confundia estômago com rim e a bebida vice-versa.
Na Tailândia existe uma tribo chamada Karen-Padong onde é tradição colocar-se argolas no pescoços das mulheres a partir dos 5 anos de idade e ir aumentando a quantidade delas e alongando o pescoço com o passar do tempo, de modo que, com a idade a passar, as mulheres passam a ter um pescoço tão longo, que a cabeça passa a ser sustentada pelas argolas e não pelo pescoço, o que significa que se as argolas forem retiradas, a morte das mulheres-girafa será inevitável em decorrência da quebra do pescoço e tudo isso, em nome da beleza!
Esta maldição dos saltos altos faz-nos andar sobre pernas de pau, quais alpinistas, até adquirir lordoses, escolioses e bicos de papagaio. Para além dos produtos de beleza à base de casco de cavalo, lamas, glândulas e fezes de animais, ervas exóticas, frutas, legumes, verduras, placenta humana; das operações plásticas que nos colocam os olhos no lugar da boca e vice-versa, nos fazem umbigos assimétricos e até laterais, obrigam-nos a dormir de olhos abertos, ou deixamos de sorrir ou passamos a ter um sorriso eterno, mais os rabiosques, peitos e bochechas redondinhos com doses maciças de silicone e botox -como se fôssemos aquele bonequinho da Michelin!.
Pergunto-me, pois, quais são as verdadeiras razões que me levam a usar uns sapatos tão altos, mesmo sabendo que ao fim do dia me sinto entre o suplício e o precípicio. Provavelmente deveria ser incriminada por aquela lei promulgada no séc. XV pelo Parlamento Inglês: ´A mulher que seduzir um homem para que ele se case com ela, utilizando-se de sapatos de salto alto ou outros artifícios (...) será castigada com as penas de bruxaria´. Acusada de bruxaria. Por pretender encantar, afinal nem sei bem a quem nem porquê, se cada vez fujo mais dos homens que o Diabo da Cruz. Parece que os psicólogos concordam que "andar por aí calçando sapatos de salto alto é uma viagem poderosa.È o equivalente feminino do calor concentrado."
Dizem os sociólogos que, em época de vacas magras, dado o seu custo relativamente baixo, o sapato de salto alto veio substituir a pulseira de brilhantes e o casaco de peles, como símbolo do luxo. Hoje, uma mulher que usa um sapato alto de um estilista de ponta é uma mulher de sucesso, assim como foi, em 1945 uma mulher usando um casaco de vison.
Dos 5 centímetros para cima, o céu é o limite. Um dos meus filmes predilectos é "The Red Shoes" (1948) e "The Woman in Red" (1984), pelo que sou mesmo levada a crer que melhor que um par de sapatos altos só mesmo um par de sapatos vermelhos (ou encarnados?, consulte-se a Paula Bobone ou a Vicky Fernandes), “Nada neste mundo se podia comparar a uns sapatos vermelhos!” já dizia Hans Christian Andersen, em “Os sapatinhos vermelhos”.
Ora, eu sou uma simples cidadã procurando resistir à normalidade da vida, mas a comprovar que pobres e ricas todas partilhamos este fascínio por esta arma poderosa (para a qual, por enquanto não é preciso de uso e porte), estão criaturas riquérrimas como Victoria Beckham eViolet Affleck.
E foi ao ler a última da última de Victoria (atenção que, ao que se saiba, a única plástica que a rapariga ainda não conseguiu fazer foi à altura!), que me resignei a uns confortabílissimos sapatos tacão 3. Parece que depois de tantos anos de agonia em sapatos altos obrigaram a rapariga a uma operação de urgência (esperamos que o sistema de segurança social a pague que a pequena é pobre!). Depois de ter usado e abusado dos ditos (há alguma coisa que a Victoria faça na medida certa?), ou seja, por causa do uso exaustivo, intensivo e ostensivo de sapatos altos, que são a sua imagem de marca - e ela usa-os para levar os filhos à escola e para apoiar o marido no estádio de futebol - Posh, implacável, supostamente impecável, sempre se calçou como se fosse uma actriz de topo - qual imitação falsa de Katharine Hepburn (que, aliás, juntamente com o pintor Winslow Homer e o actor e cantor Gene Autry, vai ser uma das personalidades que figurarão em selos postais a editar em 2010 nos Estados Unidos) - agalidando-se para o Óscar da futilidade, em grande estilo, como numa gala, escolhendo sapatos altos, bem altos, para compensar a sua altura (não só a física como a outra) e venerar o seu estilo sofisticado e fashion victim nas situações mais inusitadas. E se bem que o calçado da pobrezinha seja sempre de griffe, luxuoso e de qualidade, a quantidade de horas a que Victoria se sujeita, há muitos anos, a esta agonia, acabou por ter estas lamentáveis consequências. Diz-se que sofre de dores agonizantes nos pés (Sunday Mail) e que tem nada mais nada menos que ... joanetes. Francamente desconhecia que esta agora uma doença chique. Parabéns a quem tiver joanetes, toca a exibi-los, seja de Verão ou de Inverno, com sandalinhas de tiras. Afinal, se é in porquê ficar out?
«Eu odeio sabrinas - diz Victoria - Sou incapaz de andar com elas. A não ser que sejam usadas por uma bailarina, a dançar ballet, não as concebo sequer. Adoro saltos!» E lá vai ela do alto dos seus 15 cm, já que um salto de 10 cm para Posh ("mimada" - diminuitivo aliás usado para qualificar a infância de Hitler) são pantufas (apesar de ainda no ano passado as pantufas de Miterrand terem valido 20 mil euros num leilão em França). Mas lembremo-nos do precendente de Imelda Marcos, com os seus 3 000 pares de sapatos!
«Eu odeio sabrinas - diz Victoria - Sou incapaz de andar com elas. A não ser que sejam usadas por uma bailarina, a dançar ballet, não as concebo sequer. Adoro saltos!» E lá vai ela do alto dos seus 15 cm, já que um salto de 10 cm para Posh ("mimada" - diminuitivo aliás usado para qualificar a infância de Hitler) são pantufas (apesar de ainda no ano passado as pantufas de Miterrand terem valido 20 mil euros num leilão em França). Mas lembremo-nos do precendente de Imelda Marcos, com os seus 3 000 pares de sapatos!
Que cada uma de nós é o que é, já se sabe. Há que cuidar para que tanto vermelho não borre a pintura! Porque os sapatos altos mais não são que um tom de aguarela mais forte na paleta do preto e branco que nos consome. E indiferentemente das dores e maleitas, lá que, em dias de baixo astral, um belo par de sapatos faz toda a diferença, lá isso faz! Afinal, é como se ficássemos, literalmente, por cima do mundo!