sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Lisboa, Paris, Bucelas ... e Vale de Cavalos

A cidade assedia-me. O trabalho devora-me. Os interesses, negócios e compromissos prendem-me às raízes urbanas, e cada vez é mais difícil aproveitar as longas horas prazenteiras do meu refúgio rural. E tenho pena! Agora, que criei o meu projecto empresarial, com um vice-chairman que me apara algumas ausências, más disposições e outras maleitas, próprias de quem tem dificuldade em acreditar - mesmo - que o dia dura o que dura, e que me ampara na parte logística e operativa, tenho o direito e o dever de saborear, de degustar, o infinito verde daquela casa, os sabores do Chão-do-Prado e do Retiro do Raposo, em Bucelas, cantinhos deliciosos, em que o tempo pára e o mundo também.
Sou uma querosiana por devoção e sou Touro. Ribatejana dos sete costados. Não sei se será bem isso que explica este amor à terra, o cheiro de terra molhada, a falta que o verde me faz!
O que o Eça tem que me arrebata, que me resgata, é a descrição, a força do seu poder descritivo, sobre a ruralidade do País, os cheiros e os sabores nacionais. Tal como ele, também para mim, Paris é uma segunda mãe, e de vez em quando, as saudades de Paris desassossegam-me. Mas é no cantinho do que há de mais rural e campestre que me refaço e recrio. Lá fora, rapidamente me assoma, como no Eça mordaz, a «seca» das comodidades da ultima moda, no caso do Eça era o 202 dos Champs-Elisées. Lá onde ele degustava «diversas águas engarrafadas, ostras clássicas, de Marennes, sopa de alcachofras, ovas de carpa, frangos e túberas, filetes de veado macerado em Xerez com geleia de noz e laranjas geladas com éter» até receber a carta do procurador Silvério sobre as terras de Tormes anunciando que devido a uma tempestade, a capela onde repousavam os «preciosos restos» dos antepassados de Jacinto fora arrastada pela força das águas e das terras e com ela «as respeitáveis relíquias». Que ele «já recolhera os despojos com todo o respeito e lhes dera uma morada provisória e pedia instruções a Jacinto quanto à reconstrução da capela».
E, tal como eu quando recordo o meu avô, homem em que me inspiro quando a vida se arma em cretina e me pretende devorar o coração e alma, experimento maravilhosos ensaios de loucura, recordo Vale de Cavalos, a ida à leiteira, de leiteirinha na mão, os biscoitos, o chouriço - que, segundo a minha avó, era "o fim do mundo" - as filhozes acabadinhas de fazer, a sopa de couves com feijão, as fataças a saltar nas límpidas águas do Tejo, depois cozidas, com batatinhas, ah! que saudades, também naquele momento, em que apelaram à alma do Jacinto, e ele acordou para o passado e juntamente com ele, todos os Jacintos seus antepassados.


Jacinto, até aí concentrado e absorvido pelo mundanismo de Paris, vê como relâmpagos a imagem das suas origens, a sua corda sensível vibra de respeito pelos antepassados, aqueles que o contemplaram com a fortuna que lhe permitia a opulência da Cidade-Luz. E começa a embirrar com tudo e com nada, A aborrecer-se. A impacientar-se com aqueles mil aparelhos, a que até aí achava serem da maior serventia, e objecto de maravilha, como materialização da técnica e da civilização. As informações supérfluas, que até aí considerara culturais, passam a irritá-lo. O pó a incomodá-lo. Até Paris, vista do alto do Sacré Coeur, lhe parecia cinzenta. Enfim, do centro da cultura, do progresso e da intelectualidade, Paris converte-se n'«uma seca». E Jacinto cai numa prostração desoladora e num pessimismo irritado. Isola-se dos amigos e conhecidos. Tudo o aborrece. Toda a sua postura «é como a de um boi inconsciente que marcha sobre a canga e o aguilhão, os jornais saturam-no, na sua rica biblioteca não encontra nada que lhe interesse ler, aos criados recomenda que àqueles que o procuram os informe que não está em Paris, que abalou para o campo, que abalou para Marselha, que morreu».
A lembrança de Portugal continua a roêlo e a dominá-lo e no fim de um inverno escuro e pessimista Jacinto assomou à porta do quarto de Zé Fernandes e dispara como um tiro: «Vou partir para Tormes». Sai por ali desbravado e, ao chegar, troca a água da fonte pelas águas engarrafadas, «atirou pulos aos ramos copados de uma cerejeira carregada de cerejas», apeteceram-lhe as alfaces que viu na horta, percorreu os milharais com pasmo e admirou os vetustos carvalhos plantados pelos seus antepassados, aquietou-se a comer a boa galinha que «o nosso Melchior nos assa no espeto», com pedaços de fígado e moela. No primeiro jantarinho, ficou «estarrecido com a mesa encostada ao muro enegrecido, coberta por uma toalha de estopa, duas velas de sebo em castiçais de lata, grossos pratos de louça amarela, colheres de estanho, garfos de ferro, os copos de um vidro áspero que ainda conservavam a cor roxa do vinho, uma malga atestada de azeitonas pretas». E, ao sentir a comida a caminho, «esfregou energicamente com a ponta da toalha o garfo negro e a fosca colher», apareceu a sopa a fumegar, «desconfiado provou o caldo que era de galinha e rescendia». Provou, arregalou os olhos e sorrindo gostou. Ali se fez a conversão do nosso Jacinto ao meio rural. Três vezes comeu a perfumada sopa com fígado e moela e depois atirou-se ao arroz de favas - a pobre comida dos jornaleiros das suas propriedades. Lembra-se que em Paris abominava as favas, mas aqui provou e gostou. Destas sim. Destas favas «nem em Paris». Lançou-se como um lobo a um «louro frango» acompanhado da salada que tanto lhe tinha apetecido no quintal. Tudo «divino». E o vinho?! O vinho de Tormes, «um vinho fresco esperto e seivoso» caia de alto «duma bojuda infusa». Era afinal verdade o que o Zé Fernandes de Guiães lhe dissera, que em Paris «O senhor padece de fartura». Vai até à sala de jantar do Primo Basílio, o lisboeta. Uma criada diz: «Está a sopa na mesa». Há travessas de doce. Há creme crestado a ferro de engomar. Mais m prato de ovos queimados e a aletria com as iniciais do Conselheiro desenhadas a canela. A sopa está quente e tem longos canudos brancos e moles de macarrão. E, o cozido («o cozidinho»). Mais o arroz e o paio escarlate. A travessa de perna de vitela assada. O pão e os vinhos e as conversas sobre gulodices, receitas e proezas de lambarice…..
Ah! Estou, qual Jacinto estarrecido, a precisar tanto verde, do vinho de Bucelas - um branco fresco, de colheita tardia, talvez - o pão quente - do adoçicado da Esmeralda ao saloio da Mafalda - do pote atabafado daquela ao coelho de cabidela desta.
Lisboa, às vezes, cansa e devora, e o apelo daquela casa, na beira da velha fontaínha, rodeada de um imenso verde a perder de vista, sem vislumbre de alma humana, apossa-se de mim. Prometo. Ao primeiro vagar hei-de ir para lá.