segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A Paixão da Justiça!


Em Justiça pretende-se seriedade. E homens sérios. Irrita que na sociedade portuguesa se cultive o mito do “homem sério”, porque todos, particularmente os que lidam com questões de Justiça, se presumem - até prova em contrário - homens sérios. Constata-se que há falta de tal espécie por aí, e que, em descompensação, outra espécie prolífera que nem cogumelos. In casu, venenosos! Vivemos num País de chatos. Com a agravante que, nem por isso, são sérios. Até porque os sérios - os verdadeiros sérios - nunca são - não podem ser - chatos. Deve ser esta nossa tendência para ser «mais ou menos» e pensar «assim-assim».
E o que tem o sistema judicial a ver com isto?
Vivemos tempos marcados por uma acesa tensão institucional: alterou-se o regime de férias judiciais; mudou-se o subsistema de cuidados de saúde dos juízes, as suas regalias remuneratórias; assistiu-se a permanentes conflitos entre as cúpulas da magistratura judicial e do Ministério Público sobre os poderes na condução da investigação criminal; presenciou-se conflitos dentro dos corpos profissionais, entre bastonário da Ordem dos Advogados e Conselhos Distritais, entre Associação Sindical de Juízes e Conselho Superior da Magistratura, entre Sindicato do Ministério Público e Procuradoria-Geral da República.
A visibilidade judicial é hoje um vírus que põe em pânico - e simultaneamente em permanente exposição - juízes, advogados e quem vive no mundo da Justiça - sendo que nem sempre esta é Justa -. Outrora preparados para o sigilo e a discrição, naturalmente, hoje, (im)preparados para actores. O que facilmente se viu no processo casapiano, em que a exposição mediática se revelou um constrangimento devorador para a "caverna" justiceira. Juízes impreparados para a máquina propagandística, para a publicitação dos incidentes do processo, para a notoriedade das deficiências da máquina, para a morosidade processual.
O caso agrava-se em face do denominado crime de colarinho branco. O problema é velho e ambíguo. É um crime complexo, uma criminalidade complexa, com criminosos complexos. A criminalidade económico-financeira, a corrupção, o tráfico de influências e o abuso do poder são crimes à-parte. Com pessoas à-parte. Pense-se no rol imenso de casos em que os tribunais se coroaram de inglórias (fundos sociais europeus, Partex, facturas falsas, Caixa Económica Açoreana, Junta Autónoma das Estradas, Caso da Mala, Portucale, Operação Furacão, Apito Dourado ...)
E o que é mais perturbador, o que é ainda mais confuso, é que tão pouco tenha mudado, numa época em que tanto se apregoam reformas: no âmbito da procura judicial (desjudicialização de conflitos, criação de meios alternativos de resolução de litígios: arbitragem, mediação, julgados de paz); no âmbito da tramitação dos processos (reformas do processo civil e penal, contencioso administrativo e fiscal, procedimento de injunção para a cobrança de dívidas, criação da figura do solicitador de execução); na desformalização de actos (sobretudo na vertente comercial) ou criando novo mapa e organização judiciária para os tribunais comuns, administrativos e fiscais; na desmaterialização dos processos por via da informatização (dotação dos tribunais com redes e equipamentos informáticos, com programas que permitem uma interacção entre os intervenientes processuais (magistrados, secção de processos, advogados, solicitadores de execução, instituições colaborantes do judiciário, etc.)
Confirma-se que tudo muda para que nada mude.
Ainda que se lute contra moinhos de vento, deixam-se alguns alinhavos para os desafios dos próximos anos: combate à criminalidade grave e complexa - investigações competentes e eficazes, conclusões de acusação ou de arquivamento bem fundadas, estratégias de provas sólidas; igualdade de acesso ao direito e à justiça; em suma, eficiência e qualidade do sistema judicial.
Numa arte que exige a racionalidade como parâmetro do acto de julgar, a Justiça torna-se cada vez mais uma paixão. Impõe-se que se transforme numa Paixão. Numa fase negra para a vida da maior parte dos portugueses, a Justiça só é não verdadeiramente cega quando secundarizada por outra grande Paixão - a paixão da Justiça Social. Tanto mais que ambas têm um denominador comum: o Homem.