domingo, 24 de janeiro de 2010

A minha mãe e as palavras

A minha mãe é um paradoxo. Uma das pessoas mais espertas que já vi. Porém, enquanto que, até há pouco tempo, parecia uma serpente a encantar os demais, falando, nada dizendo, e inquirindo, sem perguntar, agora está desbocada. Diz o que quer, pergunta o que quer e da forma mais clara e intrépida que encontra, enfim, é um tsunami. Dou comigo a pregar sermões, a fazer recomendações, a chamar-lhe incauta, a acautelar as eventuais consequências que a sua insensatez pode desencadear nos outros.
O dom da palavra é o que lhe vai faltando, contraposto com uma cadeia sucessiva de vocábulos, alguns relâmpagos, uns quantos trovões. Ou seja, muito gostava eu que ela entendesse que tudo se pode dizer ... nada se dizendo. Mas a palavra, com o poder que lhe reconhecemos (diz o Manuel Alegre que é uma arma - e isso é inequivocamente verdade), apenas se converte, somente atinge, em talento, quando apurada, tratada, cuidada.
Seja uma palavra doce ou amarga, o dom da palavra, sinónimo de inteligência verbal, sobre que escreverei algumas coisitas em breve, (dom, do latim donu, significa presente, dádiva, dotes naturais, mérito, merecimento, privilégio, poder, faculdade, condão, aptidão) é mel ou fel, dependendo de como se diz, do quanto que se diz, do quando se diz. Em suma, tempo, modo e lugar têm de ser levados em conta quando se fala com os outros e para os outros.
Como se acha sempre muito sabedora de coisas biblícas, explico à minha mãe a palavra a partir das palavras e episódios do Livro.
Salomão dizia que “a palavra branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira.” E evoco Jeremias! O "profeta das lamentações"! - Confesso que sinto uma especial simpatia por ele e que me sinto identificada com ele em inúmeras situações - É o profeta que se sente impotente, incapaz, sem saída, que até de vez em quando, se revolta por ter aquela dura missão, mas continua, continua sempre. Porque o faz? Talvez a leitura, Jer 1,4-10, nos elucide. Quando Deus lhe comunicou a sua missão, o profeta, estupefacto, parece ter achado que Deus se enganara na porta (claro que isto só é crível para quem acredita que Deus que tudo vê conhece a residência de cada um dos seus devotos), que Deus não sabia o que dizia. Responde-Lhe que não é a pessoa apropriada para missão tão grandiosa… que não se sentia capaz. O que Jeremias queria dizer era que temia não ter o dom da Palavra.
Já dizia o Padre António Vieira que dá Deus o dom da fala a todos os homens, mas a alguns somente o da palavra. Porque os tontos falam (donde, não é à míngua de inteligência que há quem não fale); e falam igualmente os néscios (pelo que ao falar não faz falta o entendimento); e falam ainda os brutos (pelo que ainda que aos homens falte a sensibilidade, sendo mudos não o serão por causa disso). Mas aquela especial habilidade com as palavras é um exercício continuado de inteligência, entendimento e sensibilidade. Inteligência, para saber o que convém ser dito; entendimento, para discernir como se deve dizê-lo; e sensibilidade, para escolher o momento oportuno em que o ouvinte seja disposto a ouvir. O dom da palavra pode mesmo abrir os ouvidos que teimam em estar fechados ou fechar os ouvidos que sempre estão abertos. Porque há o que deve ser ouvido, e há quem não queira ouvir; e há o que não convém que seja ouvido, e abunda quem queira ouvir. Daí a força da Palavra.
Ora, eu, que, com a idade, passei a medir as palavras, a perceber e antever as suas nuances e matizes, só tenho que agradecer à minha mãe ter-me cedido a capacidade que outrora tinha no uso das mesmas. E admito que procuro o dom da palavra.
Recordo a história do sultão sonhou que tinha, de repente, perdido todos os dentes. Acordou assustado e chamou para que interpretasse o sonho.“Que desgraça, Senhor!” –exclamou o sábio.”Cada dente caído representa a perda de um parente de Vossa Majestade!”.“Mas que insolente” –gritou o sultão. “Como se atreve a dizer tal coisa?!” Então, chamou os guardas e mandou que lhe dessem cem chicotadas. E mandou que chamassem outro sábio para interpretar o mesmo sonho. O outro sábio chegou e disse: “Senhor, uma grande felicidade vos está reservada! O sonho indica que ireis viver mais que todos os vossos parentes!”. A fisionomia do sultão iluminou-se e ele mandou dar cem moedas de ouro ao sábio. Quando este saía do palácio um cortesão perguntou ao sábio: “Como é possível? A interpretação que você fez foi à mesma do seu colega; no entanto, ele levou chicotadas e você moedas de ouro!”.“Lembre-se sempre” – respondeu o sábio. “Tudo depende da maneira de dizer as coisas, e esse é um dos grandes desafios da Humanidade. É daí que vem a felicidade ou a desgraça; a paz ou a guerra. A verdade deve ser dita sempre, não resta a menor dúvida, mas a forma como ela é dita, é que faz a grande diferença”.
E esta é uma grande verdade, mãe!