quarta-feira, 16 de junho de 2010

Manuel Maria Carrilho e a Europa "Interior"



Manuel Maria Carrilho, no DN Opinião, fala sobre a "Europa interior". Começa por um lugar-comum, que às vezes, é mesmo só muito adiante que se descobre o que ficou para trá. Parece que é o que está a acontecer à União Europeia. Embalada por um inebriante optimismo nos anos 90 do século passado, muito inflacionado por uma leitura tão rudimentar como triunfalista da queda do Muro de Berlim, a Europa andou simultaneamente depressa e devagar demais.
Depressa demais nas mudanças que exigem metabolizações culturais e civilizacionais profundas, que só se fazem no tempo longo: as alterações de soberania, os cruzamentos dos espaços públicos, a partilha de desígnios, etc. E deva-gar demais nas alterações que se impunham em tudo o que se refere às previsíveis consequências da criação da moeda única, o euro.
Os impasses sucessivos, que vão da discussão do Tratado de Nice até à ratificação do Tratado de Lisboa, retratam bem esta situação, que continua - como agora tão bem se tem visto - por resolver. O Tratado de Lisboa permitiu sem dúvida ultrapassar o problema criado pelos chumbos de 2005 ao projecto de Tratado Constitucional, mas hoje todos reconhecem que não enfrentou o essencial. É deste facto bem objectivo, não de nenhum "masoquismo europeu", como há dias escrevia Paul Krugman no The New York Times, que resulta a actual desorientação europeia.
O mais importante é compreender que tudo isto vem de longe, de uma tensão estrutural entre os fundamentos iniciais da construção europeia e os objectivos nacionais entretanto assumidos pelos diversos Estados europeus. Por um lado, os fundamentos nasceram ligados à forte convicção de que a economia podia conseguir o que a diplomacia tinha falhado sistematicamente: garantir uma paz duradoira numa Europa destroçada pela guerra. É aqui que se encontra o motor de tudo o que, através de diversas transformações e fases, conduziu à criação do euro. E ao instituir-se a moeda única acreditou-se que, por mais dificuldades que se tivesse de enfrentar, ela teria efeitos de convergência nas tão diversas e heterogéneas economias europeias. Não teve - pelo contrário, em alguns casos a divergência até aumentou. Por outro lado, ao mesmo tempo que se fazia este caminho, a generalidade dos governos europeus, apesar das diferenças de contexto e até de ideologia, procurou combinar essa solução de inspiração monetário-liberal com o desenvolvimento de um Estado social que, crescendo mais depressa do que a economia, foi cada vez mais obrigado a financiar-se a crédito, atingindo os níveis de endividamento que hoje se conhecem.
A União Europeia construiu-se, assim, sobre uma tensão de fundo entre duas dinâmicas distintas, uma liberal e outra social, tensão cujo potencial virtuoso parece ter--se esgotado. O que impõe, agora, que se considerem alternativas e opções longamente evitadas - é justamente o que está na mesa, na reunião de hoje do Conselho Europeu. A crise europeia não veio, pois, de fora. Claro que o contexto global ajudou, mas as dificuldades em que nos encontramos vêm do seu interior, elas decorrem objectivamente de se ter chegado a um ponto de fricção que, para não se tornar num momento de ruptura, exige tanto de inspiração como de ousadia. Sobretudo porque, em vez de se apresentarem com uma visão convergente, a Alemanha e a França se têm colocado nos pólos opostos desta alternativa, condenando a União Europeia ao impasse. Uma das frases mais citadas nestes últimos dias em França foi a de François Mauriac, quando disse que gostava tanto da Alemanha que preferia que houvesse duas. Para bom entendedor!...
E a alternativa é clara: enquanto, para uns, a solução se encontra no reforço dos critérios do Pacto de Estabilidade, com mais disciplina e mais sanções para o conseguir, para, outros a lição a tirar desta crise é que, uma vez que este modelo se mostrou incapaz de garantir a convergência, é preciso avançar com um governo económico europeu.
Mas será isso possível? É que um governo económico, como esclarece Christian Saint-Étienne (autor do perspicaz La fin de l'euro, de que aqui falei há meses), tem de satisfazer três condições: dirigir simultaneamente as políticas monetária, orçamental e de cambial, com o objectivo de se atingir um crescimento efectivo e um baixo desemprego. Estabelecer um orçamento federal, que permita redistribuir os recursos entre os Estados membros de modo a reduzir as desigualdades entre eles. E enquadrar a concorrência fiscal e social entre os diversos Estados membros. Não é fácil… mas como dizia Heráclito, se não acreditares no inesperado, não o encontrarás.