quinta-feira, 24 de junho de 2010

Diplomacia, protocolo, funções de representação e omissão: ainda o episódio Cavaco Silva e José Saramago

É público que Cavaco Silva e o escritor nunca nutriram simpatia um pelo outro. Enquanto Primeiro Ministro, Cavaco Silva sorteou-nos com os piores Secretários de Estado da Cultura de que há memória desde a implantação da Democracia. O mais perto que lhe conhecemos de uma apreciação poética foi o seu ar extasiado perante umas mal ensaiadas poesias da autoria de sua esposa, D. Maria. Vai daí que se sabe mesmo que uma das razões que levaram o escritor a abandonar o País foi o veto de Sousa Lara que cortou o romance de José Saramago Evangelho segundo Jesus Cristo da lista dos concorrentes ao Prémio Literário Europeu, na qualidade – já se vê - de Subsecretário de Estado da Cultura. Lá foi dizendo Sousa Lara que foi "Porque não representa Portugal", que tal “atitude nada tem a ver com estratégias de venda, nem sequer com opções literárias. E muito menos com as escolhas políticas de Saramago. Não entrou em linha de conta o facto de ele ser comunista ou pertencer à Frente Nacional para a Defesa da Cultura" (Afirmações de Sousa Lara ao Público, 25 de Abril de 1992), e que "A obra atacou princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses. Longe de os unir, dividiu-os." (Sousa Lara aquando do debate sobre a Cultura na Assembleia da República, Abril de 1992)
Porque terá sido então que a celeuma se instalou pela ausência notada de Cavaco Silva? Dizem alguns que este tinha o direito de fazer o que bem entendesse, que em Democracia não há imposições, que escrever uma carta de condolências era o bastante. Claro que se Cavaco Silva comparecesse ao funeral, muitos o acusariam de cinismo e hipocrisia, donde não viria mal ao mundo porque essas se presumem e se aceitam como qualidades inatas e fundamentais aos políticos. É mau, é triste, mas uma infeliz constatação. Portanto, Cavaco aguentaria estoicamente esta acusação, até porque não é a primeira vez que é acusado de tal inqualidade ao vivo e a cores. Manteria, sem dúvida, a sua dignidade, e, mais ainda, manteria intocável a instituição que representa. Tenho de discordar desta história dos direitos em Democracia irem tão longe que permitem uma omissão deste tipo a um Presidente da República – que curiosamente tem sido acusado de meter o bedelho em tudo e mais alguma coisa não estivesse já em plena campanha eleitoral – e para mim, dos ensinamentos da minha passagem por alguns gabinetes ministeriais – alguns chefiados por pessoas ocasionalmente bem escolhidas pelo então Primeiro Ministro Cavaco Silva – e pela Assembleia da República – idem, não esqueço o significado de palavras como protocolo e diplomacia. Ou seja, noblesse oblige! Quem assume cargos públicos desta índole perde o direito a ter posições próprias perante casos como este. Goste ou não goste, a sua posição exigir-lhe-ía tacto político, no mínimo, como Presidente da República Portuguesa.
Se Cavaco não foi ao funeral porque não era amigo ou conhecido do escritor e se não suporta a ideia de prestar homenagem a alguém que o enfrentou, será aceitável como homem, mas inaceitável como Presidente. Cavaco foi ao absurdo, porque não compreendeu que as funções de representação de um Presidente não servem os amigos, subordinam-se à honra de um país. O Presidente Cavaco Silva apequenou-se perante o homem Anibal. É um paradoxo! Para quem não perde uma oportunidade para revelar o sentido humano esta foi uma ocasião imperdível e de efeitos irreversíveis.
Um Presidente da República que falta à última homenagem ao único prémio Nobel da Literatura de língua portuguesa, a um dos mais importantes escritores do século XX, ao que, a par de Pessoa, ofereceu a Portugal picos do notoriedade internacional, e se limita a decretar dois dias de luto nacional, faltando à cerimónia oficial, não percebeu a essência da portugalidade.
É neste sentido que Cavaco Silva tem vindo a ser conotado com um homem de contas e não como um homem de letras. Curiosamente, é um homem de letras que lhe faz frente nas eleições que se avizinham. Cavaco nutrirá por Manuel Alegre o mesmíssimo respeito que mostrou ter por Saramago. É-lhe, por certo muito difícil aceitar que quem não domine matérias económicas possa aspirar à Presidência. Provavelmente, não terá relevado alguma coisa do que fez como Ministro das Finanças. Que estes, sim, servem para isto: fazer contas. A um Presidente exige-se um pouco mais: que saiba compreender a alma portuguesa, a incontenção dos escritores, a rebeldia dos filósofos e a aparente insensatez dos livres pensadores.
O triste é experimentar este tirocínio. A que exéquias Cavaco Silva se sentirá obrigado a fazer representar Portugal? Melhor dizendo, quantos e que tipo de portugueses lhe merecem essa homenagem? Saramago não o obrigou a essa capitulação. “Deixai que os mortos enterrem os mortos” que vêm aí as eleições e há muito trabalho de casa para preparar e seria impensável e inadequado interrompê-lo só porque morreu um tipo de que até nem gostava nada (era recíproco!). Passe bem os olhos por alguns dos homens que condecorou com uma das suas mãos e que a outra lho perdoe!
Mas do incidente não falará a História até porque Cavaco tem sempre razão e nunca se engana, mas experimente ter um dia como livros de mesa de cabeceira – se Deus se interessasse por política a reforma permitir-lhe-ía longas noites de leitura - o “Memorial do Convento”, o “Levantados do Chão”, o “Ano da Morte de Ricardo Reis” ou a “História do Cerco de Lisboa”, e, dá-me a ideia, de que, só então, Cavaco assumirá a humildade para pedir perdão ao homem a que recusou a homenagem devida. Mais a homenagem de uma VIDA!