sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Há cem anos - Monarquia e República


Um mês volvido sobre a constituição jurídica da Academia de Estudos Laicos e Republicanos, de que me orgulho de ser um dos fundadores, deixo-vos com alguns textos saídos de uma breve investigação e escrutínio (alguns sem autores referenciados) elucidativos do clima então vivido.
Há cem anos
1909 não representou um ano particularmente benigno para Portugal. No trono estava D. Manuel II, com 19 anos, o mais jovem rei da Europa. A sua ascensão à realeza havia sido inesperada. Um ano antes preparava-se para a admissão à Escola Naval quando seu pai, o Rei D. Carlos, e seu irmão, o príncipe herdeiro D. Luís Filipe, foram assassinados.
Assim a juventude e inexperiência de D. Manuel não faziam dele o opositor ideal ao muito dinâmico movimento republicano e anticlerical que dia a dia se intensificava. Em Fevereiro tem lugar na capital um comício a favor da República. Em Julho regista-se uma greve do pessoal dos eléctricos do Porto.
Agosto traz uma manifestação por 100 000 pessoas exigindo a expulsão das ordens religiosas. No mesmo mês José Luciano de Castro, chefe do Partido Progressista, escreve a D. Manuel II: ³O Partido Republicano avança a passos rápidos e prepara-se para uma aventura revolucionária.
Em Outubro explode uma bomba em Lisboa, junto à igreja de São Luís dos Franceses e no Porto inicia-se a publicação de A Pátria, jornal republicano.
A Natureza tampouco se mostrou benévola. No dia 23 de Abril um sismo estimado em 6,6 ou 6,7 graus da escala de Richter causou terríveis devastações na zona de Benavente, Salvaterra de Magos, Samora Correia e Santo Estêvão. Registaram-se mais de 40 mortos e numerosos feridos, muitos destes evacuados para Lisboa a bordo de um vapor. Nos dias seguintes o Exército teve de armar grande número de tendas de campanha para abrigar os desalojados e distribuir mantas e alimentos.
Entre 15 e 17 de Dezembro uma violentíssima cheia do Rio Douro levou a inundações no Porto e em Gaia, arrastou para o mar dezenas de barcas com os seus carregamentos, fez encalhar alguns navios e provocou várias mortes.
Nem tudo, no entanto, foram adversidades. Nesse ano de 1909 o rei teve oportunidade de conviver com Afonso XIII durante uma breve visita do soberano espanhol, apenas três anos mais velho do que D. Manuel, ao antigo Paço Ducal de Vila Viçosa, agora residência de repouso da família real portuguesa, e discutir com ele a situação dos dois países ibéricos.
A 18 de Junho chega a Lisboa, a convite do rei, a famosa cantora e bailarina francesa Gaby Deslys e inicia-se entre os dois um idílio em breve terminado
quando a imprensa oposicionista começa a chamar a atenção do público para secretos encontros do par. Em Novembro o rei parte para uma viagem oficial a Inglaterra a fim de tratar de um seu possível noivado com a Princesa Victoria Patricia, filha do Duque de Connaught e neta da Rainha Victoria, projecto que nunca chegou a concretizar-se.
Um evento que não atingiu qualquer ressonância foi que a 9 de Fevereiro desse ano havia nascido em Marco de Canaveses, Trás-os-Montes, uma menina a que foi posto o nome de Maria do Carmo Miranda da Cunha. Era lógico que nessa altura ninguém poderia prever que essa bebé iria atingir celebridade internacional sob o nome artístico de Carmen Miranda.
Outra notícia que passou despercebida referia-se a que em 16 de Julho, na cidade de Viseu, um ex-seminarista havia sido aprovado com 19 valores no exame do Curso Geral dos Liceus. O brilhante examinando chamava-se António de Oliveira Salazar.
Também não causou grande eco o falecimento de Henri Burnay, banqueiro de origem belga, o homem mais rico de Lisboa.
Portugal continuava a oferecer atractivos a nacionais e forasteiros. Na capital a zona do Rossio revelava-se cada vez mais o centro da vida citadina. No local onde antes existira o Paço dos Estaus, que alojava enviados estrangeiros, e depois a sede da Inquisição, o Teatro Nacional, era um dos mais conceituados do país.
A dois passos funcionava o Avenida Palace, o hotel mais luxuoso da cidade.
Do outro lado, no Largo de São Domingos, a pequena taberna chamada A Ginjinha havia já iniciado a enorme popularidade que ainda hoje mantém.
Perto encontrava-se a Praça da Figueira, um vasto mercado sob uma armação metálica de quatro torreões que, com os seus 8 000 metros quadrados, ocupava quase um quarteirão.
Para o residente ou turista de carteira bem recheada seria por outro lado agradável deambular pelo Chiado e imediações, onde acharia muito do que desejasse durante todo um ameno dia.
Uma devoção matinal seria possível em qualquer das duas igrejas no cimo da rua, a do Loreto e a Conceição Nova. Se quisesse fazer compras entraria por exemplo na prataria Leitão e Irmão, fundada no século XVIII, fornecedora da Casa Real.
Outra opção era constituída pela Livraria Bertrand, que vinha também do século XVIII e oferecia as últimas novidades literárias do país e do estrangeiro. A Casa Havanesa, tabacaria onde de igual modo se podiam adquirir objectos regionais, notabilizara-se um quarto de século antes por afixar numa tabuleta as mais recentes notícias do mundo, enviadas telegraficamente pela Agência Havas.
A firma Jerónimo Martins expunha uma enorme variedade de requintados vinhos e produtos de charcutaria importados de vários países. Como nota curiosa, no seu início vendia de igual modo azeite produzido em Vale de Lobos na propriedade do famoso escritor Alexandre Herculano.
A loja de modas Ramiro Leão ocupava todo um edifício e para conforto das clientes estava dotada de um elevador com um banquito. Nesse estabelecimento podiam comprar-se, a metro, tecidos chegados de França, fitas, botões e outros artigos. Ao fundo do Chiado estavam, lado a lado, os Armazéns Grandela e os Grandes Armazéns do Chiado, por muitas décadas os dois únicos "department stores" existentes na capital. Quase em frente, a pequena Pastelaria Ferrari tornara-se no seu género uma das mais afamadas de Lisboa.
O café A Brasileira era relativamente moderno pois havia sido inaugurado em 1906. Aí, tal como no Café Nicola, do Rossio, tinham lugar longas tertúlias de escritores e artistas. Qualquer destes cafés era um local adequado para uma descansada leitura dos dois mais importantes jornais lisboetas, O Século e o Diário de Notícias. Não muito longe situava-se a histórica Cervejaria da Trindade, instalada no que antes fora o refeitório do Convento dos Frades Trinos. Nas proximidades do Chiado encontrava-se desde 1784 o Restaurante Tavares, o mais distinto de Lisboa. Numa rua transversal as elegantíssimas instalações do Grémio Literário constituíam ponto de reunião e convívio para literatos, jornalistas, políticos e membros da alta sociedade.
Pela cidade haviam surgido cinemas e vários localizavam-se no Chiado ou não muito longe. O primeiro fora o Salão Ideal, na Rua do Loreto, de 1903, que atingira enorme renome. Em 1907 apareceram o Salão São Carlos na Rua Paiva de Andrade e o Salão Chiado na Rua Nova do Almada. No ano seguinte seria inaugurado o Chiado Terrasse, com o seu quê de cinema de elite, que iria sobreviver por um meio século. Um pouco mais abaixo, junto ao Arco do Bandeira, erguera-se o Animatógrafo do Rossio, cuja pitoresca fachada se conservaria até hoje. Na área do Chiado podiam também encontrar-se vários teatros, como o de São Carlos, o São Luís ou o Trindade.
Por esses dias o futebol tomava vulto como modalidade de grande aceitação por todas as classes sociais. Três anos antes o Campo Grande Futebol Club tinha-se oficialmente transformado no Sporting Club de Portugal, no seu início de feição algo aristocrática e sobretudo vocacionado para o ténis e atletismo. De cunho popular era o Sport Lisboa e Benfica, criado em 1908 pela fusão do Sport Lisboa com o Grupo Sport de Benfica.
A equipa do Clube Internacional de Football havia sido a primeira a exibir-se no estrangeiro, derrotando em 1907 o Madrid Football Club. Na capital do Norte o recentemente remodelado Football Club do Porto e o Boavista Football Club competiam para a supremacia neste desporto.
Deslocar-se para os bairros periféricos de Lisboa não era difícil. Desde 1902 já não circulavam na capital os chamados "americanos", puxados por mulas e rodando sobre carris, destronados pelos carros eléctricos que haviam surgido em 1901, com uma carreira entre o Cais do Sodré e Algés. Agora, oito anos depois, a sua rede estendia-se até zonas como o Areeiro, Benfica, Graça ou Poço do Bispo. Em débil concorrência com os eléctricos em 1909 os transportes públicos de Lisboa incluíam carros puxados por duas mulas, abertos durante o verão e fechados no inverno. Andar a pé era relativamente seguro. Uma boa parte da cidade estava já dotada de iluminação eléctrica e a Guarda Municipal, a pé ou a cavalo, patrulhava as ruas.
Para chegar a pontos altos desde a Baixa ou área ribeirinha utilizavam-se os elevadores de Santa Justa. Glória, Lavra e Bica. Havia dois anos, táxis, os descendentes das históricas tipóias, disponibilizavam-se para dar serviço aos mais apressados ou opulentos.
Nas duas principais cidades do país os jovens aspirando a uma educação académica tinham acesso a algumas instituições como as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto ou o Curso Superior de Letras da capital. Não obstante, a única universidade articulada era a de Coimbra.
Atravessando então a sua fase final de estabelecimento quase monástico, esta universidade orgulhava-se de uma trajectória que vinha desde o século XVI, quando atingira, sob a direcção dos jesuítas, a sua autonomia face aos Estudos Gerais de Lisboa. Os alunos usavam obrigatoriamente a capa e batina de origem eclesiástica, embora nesse ano de 1909, o colarinho clerical já houvesse sido substituído por uma gravata negra ou mesmo de outra cor.
Em todos os actos académicos era obrigatório o juramento de fidelidade a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal. (Esta disposição, inaceitável para famílias judaicas, levou muitas delas, incluindo os Bensaúde, a enviar os seus filhos a universidades estrangeiras, sobretudo alemãs.)
Existia uma Faculdade de Teologia e uma cadeira de Direito Canónico na Faculdade de Direito. Muitos professores e mesmo bastantes alunos eram sacerdotes. Tudo iria terminar no ano seguinte, quando a nova república laicizaria a estrutura e os rituais da universidade.
Nuvens negras começavam a ensombrar o horizonte político mas D. Manuel não aparentava grande preocupação com o futuro próximo. Em Julho e Outubro visita unidades militares, onde os oficiais lhe manifestam testemunho de fidelidade. Um ano depois, todavia, face à eclosão da revolta republicana de 5 de Outubro, o Exército não iria opor qualquer significativa resistência.
Exilando-se para Inglaterra, o rei jamais voltaria a pisar solo pátrio. (texto adaptado de forma livre, de autor não referenciado)