sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Direito ao bom nome e à liberdade de expressão

DIREITO AO BOM NOME E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
“O Tribunal da Relação do Porto evitou uma condenação de Portugal pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem” (autoria de terceiro não declarado)
Corria a Primavera de 2003 e a polémica sobre a Casa da Música e a política cultural da Câmara Municipal do Porto (CMP) tinha atingido o seu auge.
Numa entrevista, Pedro Burmester, que dirigia a Casa da Música, denunciara publicamente uma série de comportamentos do presidente da CMP que, no seu entender, revelavam uma total incompreensão e desvalorização do projecto. Pelo seu lado, o presidente da CMP, em reacção à entrevista, exigiu publicamente a demissão de Pedro Burmester do cargo de administrador da Casa da Musica. Esta sequência de eventos suscitou um amplo e intenso debate nos meios culturais e na comunicação social, tendo inclusivamente Jorge Sampaio, então Presidente da Republica, afirmado, aquando da sua visita ao Porto para presenciar os festejos do São João, que era importante a permanência de Pedro Burmester no projecto da Casa da Música.
O critico de arte Augusto M. SEABRA, então colaborador regular do ‘Publico’, publicava semanalmente um artigo de opinião onde habitualmente tecia comentários (muitas vezes, violentos e contundentes) sobre assuntos culturais, num tom, muitas vezes, irónico e polémico, independentemente da cor político-partidária dos visados.
No entender deste crítico de arte, o presidente da CMP, depois de ter sido eleito, tinha progressivamente deslocado as prioridades culturais do município para a chamada ‘cultura popular’ (ou ‘pimba’), em detrimento da ‘cultura clássica’, o que era muito criticado por diversos agentes culturais.
Para Augusto M. SEABRA, o presidente da CMP tinha uma posição hostil e de desconfiança, assumindo posições que obstavam ao normal e saudável desenvolvimento do projecto da Casa da Música que, no seu entender, era um projecto de uma importância capital em termos de desenvolvimento cultural do Norte. E considerava que as posições públicas do presidente da CMP revelavam uma concepção provinciana, senão mesmo pacóvia da cultura.
No dia 22 de Junho de 2003, na sua coluna semanal, escreveu o seguinte: “No momento em que o energúmeno que encabeça a maioria PSD-CDS-PCP na Câmara Municipal do Porto e seus apaniguados encetaram uma lógica repressiva de silenciamento, à cata de ‘delito de opinião’, porque o que neste momento se nos oferece fruir e avaliar é um projecto cultural de uma envergadura e seriedade absolutamente ímpares”.
O presidente da CMP não gostou e queixou-se criminalmente, acusando o crítico de o ter difamado, sendo a expressão ‘energúmeno’ objectivamente ofensiva. Augusto M. SEABRA defendeu-se, afirmando que mais não escrevera do que um artigo de opinião, fundamentado no comportamento público do presidente da CMP, muitas vezes polémico e contundente.
‘Energúmeno’, segundo o dicionário que citava, significa ”(1) Pessoa que se supõe estar possessa do demónio, ou (2) Pessoa que possuída por uma obsessão pratica desatinos”. E, no entender, o autarca obcecado com o seu ‘ódio’ à cultura clássica praticava desatinos diversos, pelo que ao manifestar a sua opinião nenhum crime praticara. Assim não entendera o 1º Juízo Criminal do Porto, por considerar que Augusto Seabra, ao utilizar a palavra ‘energúmeno’ pretendia apelidar o autarca visado de ‘individuo’ desprezível, que não merece confiança; boçal, ignorante, como constava de outro dicionário, pelo que o condenou na pena de 2160 euros e no pagamento de uma indemnização de 4.000 euros.
Recorreu, então, o crítico de arte para o Tribunal da Relação do Porto (TRP), que não acompanhou o tribunal de 1ª instância na escolha do sentido da expressão em causa. Para o TRP nada justificava, quanto mais não fosse por respeito ao princípio ‘in dúbio pro reo’, que o tribunal de 1ª instancia tivesse dado relevo só a alguns dos sentidos da palavra em causa, de resto os mais deselegantes.
Em 31 de Outubro de 2007, num acórdão notável, reconhecendo a importância do direito ao bom nome mas sublinhando a importância de o mesmo ser ponderado com a liberdade de expressão numa sociedade democrática, os juízes desembargadores António Gama, Luis Gominho, Abílio Ramalho e Arlindo Pinto, citando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), absolveram o crítico de arte. Segundo o TRP, Augusto SEABRA não fora ‘delicado na sua critica’, sendo certo que o direito penal não trata dessa dimensão dos comportamentos’. Mas também não nos parece ocorrer ataque pessoal gratuito: o artigo de opinião em causa é apenas mais um, em que o crítico desanca de modo desabrido a política cultural do autarca, que na sua opinião era errada.
Esta valorização da liberdade de expressão e do debate político frontal e contundente, a que não estamos habituados, viu-se agora reforçada com um recente acórdão do TEDH. No caso Brunet-Lecomte e SARL Lyon Magazine contra a França, estava em causa a condenação por difamação de um jornalista que, num artigo, apelidara de ‘energúmeno’ um professor universitário com ideias e práticas radicais e polémicas.
O TEDH, no passado dia 20 de Novembro, considerou que a França, ao condenar o jornalista e a revista, violara a liberdade de expressão consagrada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Para o TEDH, o termo ‘energúmeno’ tinha um sentido irónico, pelo que não podia ser considerado injurioso e, por outro lado, o estilo e as atitudes do professor em causa também tinham de ser levados em conta na ponderação dos diversos valores em questão.
Pode assim dizer-se que no caso de Augusto SEABRA, o TRP não só foi exemplar na definição, como evitou mais uma condenação de Portugal no TEDH.