sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Ao lado de Manuel Alegre "Portugal - Um sonho intergeracional"

Por ocasião do convite para entrar no grupo do Face "Um sorriso por Portugal", lançou-me a minha amiga Jesuína Ribeiro, um repto. Um texto por Portugal. Que melhor do que repor o que há tempos escrevi no meu blog? Opto por ladear uma ideia lançada por Manuel Alegre.
Sobre o que somos. Somos Portugueses. A nossa Palavra é Atlântico. Nós Somos a palavra Atlântico. António Sérgio diz que uma das causas para a formação de Portugal foi a convergência dos caracteres atlânticos. Escrevia Afonso Duarte: “Há só mar no meu país.” O Atlântico é a nossa Pátria. Portugal fez-se navegando, descobrindo, ensinando o mundo, enfrentando os mares. O mar! Que tratámos como "um dos nossos". Aproximou-nos de continentes. Com ele povoámos. Com ele pusemos em marcha uma revolução. Cultural. Científica. E que esteve no coração do Renascimento. E que abriu caminho à primeira globalização. Portugal foi Europa antes de a Europa o ser.
Navegando e descobrindo fez - disse Pessoa - que o mar unisse e não que separasse. Esta é a carga histórica que está dentro da palavra Atlântico. Temos pois Portugal - o Atlântico. E os homens que o povoam. Alguns alheios à essencialidade da cultura portuguesa. A de um certo universalismo. De uma certa capacidade para compreender - e até aceitar - o Outro. A diferença. Assim o exprimiu Camões nas Endechas a Bárbara Cativa. Assim o disse Pero Vaz de Caminha quando, na Carta a D. Manuel em que lhe dá a nova do achamento do Brasil, exalta a beleza das índias e dos índios, de quem diz serem eles mais amigos nossos que nós deles, o que é já uma autocrítica constatada e um elogio da diferença.
“É-se tanto mais português quanto mais universal”, disse Pessoa e disse-o quando escreveu esse verso imperecível: “Portugal, futuro do passado.”
País que rima com liberdade no respeito pelos outros. Seguindo Octávio Paz, escritor mexicano Nobel de Literatura, “a liberdade não é uma filosofia e nem sequer uma ideia: é um movimento de consciência que nos leva, em certos momentos, a pronunciar dois monossílabos: sim ou não.”
Como fazer? (O que fazer?) para que os portugueses de hoje se identifiquem com Portugal. Sintam a alma portuguesa. Tenham (como Teixeira de Pascoaes dizia), a genuína saudade portuguesa, a saudade prospectiva, a saudade do futuro.
Como se faz voltar o Sonho? Urgem causas, ideais, novas utopias. Num mundo globalizado e unipolar, marcado pela uniformidade, a economia única, o pensamento único, a cultura única e por uma etnização ou “bigbrotherização” da vida. Num mundo de hegemonia económica, política e cultural. A par com novas formas de desagregação e fragmentação. Em comum: impõe-se Um Novo Sonho. Jovens com golpes de asa. Renovados suplementos de alma. Creio que essa herança histórica é-nos reservada. Porque se há causas próprias a cada geração, acredito que Portugal é A causa comum. Transversal. Intemporal. Medalhão doirado. Carmim que jorra. Portugal. País aberto ao mundo. Nação-piloto, pioneira, missionária e sempre mãe, no encontro com outros povos e culturas. Quando as nossas naus desbravavam o mar desconhecido, a virgindade das águas deu-se às naus, aos barcos, à bandeira de Portugal. Foi a alma atlântica que avassalou mares nunca antes desflorados. No mar, nós fomos os primeiros europeus. E esquecemos que esse “estar na linha da frente” só foi possível porque enquanto os outros países da Europa se degladiavam em guerras intestinas e feudais, tinhamos já feito a nossa revolução (a de 1383-85 - a primeira revolução popular e nacional da Europa).
Como escreveu Dominique Lelièvre em “Mer et Révolution”, o povo português foi pioneiro no despertar do sentimento nacional. E é nesta era da globalização e de construção europeia que urge reavivar, ressuscitar, reperspectivar o sentimento nacional.
Entender que fazer parte da Europa não significa a diluição do espírito português, a perda do Atlântico. Mais do que nunca é necessário sonhar um projecto nacional.
Reivindicar o direito a sermos europeus de primeira, num imenso abraço à nossa identidade - à nossa atlanticidade.
A nossa força na Europa e no Mundo depende da forma como projectamos a nossa vocação e tradição atlântica. É essa a nossa singularidade, a nossa primeira e permanente utopia.
As gerações, todas as gerações, têm de lembrar a origem do sonho. Que a palavra Utopia tem raiz portuguesa.
Conta Thomas More que foi um marinheiro português, Rafael, que, num bar de Amsterdão, lhe falou da ilha perfeita. Onde ficava a ilha não o disse. More chamou-lhe Nusquama (Em Parte Alguma) e foi Erasmo quem fez com que a substituísse pela palavra grega Utopos (também, Em Parte Alguma). Talvez a ilha só tenha existido na imaginação daqueles que a procuraram. Talvez ela seja um pouco de todas as ilhas. Talvez ela não seja mais do que a própria demanda. Ou talvez, como insinuava Torga, ao falar da “índias de dentro”, ela só exista, afinal, dentro de cada um de nós. Está aqui e não está. É toda a parte e nenhures. E talvez Rafael seja todos os marinheiros portugueses e nenhum. Talvez seja afinal um pouco de todos nós. Talvez mais do que nunca precisemos de encontrar um novo Rafael, que nos fale de uma nova ilha, mesmo que essa ilha não exista em parte alguma ou só exista dentro de nós e mesmo que ela se chame Utopia. Porque a verdade é que a História, como disse Joyce, se tornou um pesadelo.
Bárbaros, para os gregos antigos, eram os que não falavam a mesma língua e não adoravam os mesmos deuses. Hoje, bárbaros são os que não falam qualquer outra linguagem que não a do cifrão, a fria linguagem do cifrão. Hoje há os que substituíram os antigos deuses pelos sacrossantos mercados financeiros. E quão poderosos são os seus oráculos! Já não são lengalengas nem labirintos inofensivos. São variáveis determinantes, avassaladoras. São proprietários da alegria e da tristeza. Os oráculos hoje são cotados na bolsa. Orações gritadas e agitadas. Ordens de compra e venda dos corretores. Das suas indicações depende a vida das empresas, das famílias, das economias, e também, se nada pudermos contra a corrente, da nossa cultura, da nossa língua, da nossa identidade.
Que podemos nós contra a nova barbárie? Que podemos nós contra uma lógica económica que exclui dois terços da humanidade?
É preciso revelar este mundo aos que olham mas não vêm. Denunciar injustiças e violências. E semear um outro mundo. Adubar um outro mundo. Já não é, nunca foi, um problema de geração. É hoje uma responsabilidade de todos. Criar um outro mundo. Iniciar uma nova demanda. Por isso falei de Rafael e da Utopia. Porque não temos outra navegação senão essa: a busca de um mundo mais livre, mais justo e mais fraterno. Em toda a parte, e primeiro, dentro de nós. A nossa bandeira só pode ser a da liberdade livre. A liberdade que cantada Artur Rimbaud. A nossa arma é aquele “terrível poder de recusar,” de que fala Miguel Torga. Há que reaprender a pensar livre. A criticar o reino cadaveroso do dogmatismo e do sectarismo. Sou da geração que entendeu a magia da canção. Que não há machado que corte a raiz ao pensamento. Talvez por isso, não acredite em lições, em saberes privilegiados, em verdades impostas. E se não sei para onde vou, sei, com certeza, que por aí não vou. E sei que avanço nos desafios. Que devemos lançar novos desafios. A todas as gerações. Um desafio aos jovens. Construir um novo Portugal é um desafio intergeracional, suprageracional.
Urge indagar, debater, criticar, e dizer não, quando é o não que tem de ser dito. Sem instrumentalizações impostas sem manipulações aceites. Parafraseando Sartre, dizer aos jovens: “Não tenham vergonha de agarrar a lua, porque nós precisamos dela.” E de tudo o que temos para lhes dizer é que não tenham medo de ousar o impossível. Foi sempre com os que ousaram o impossível que se obrigou o Poder a ousar pelo menos um pouco do que é possível.
“Que vivam a vossa vida, ousem a vossa vida - ou, como queria o filósofo - dancem a vossa vida. E que sejam o inconformismo, a irreverência, a rebeldia e o contra-poder de que todos os poderes precisam. Disso depende a proporcionalidade, a razoabilidade do poder, a limitação dos que o detém.”
Tudo o que lhes podemos mostrar é o que já têm - o que já é tão seu - e, porém, não o sabem, não o vêm, não o sentem. Estás-lhe nas mãos – e é o mais fantástico dos poderes: o poder da juventude! Que levem de nós o mapa genético do sonho! Que tomem de herança aquela que foi a nossa herança também! Que partilhem connosco a força do não que fizemos nosso! Que o nosso não seja o não deles também! É tudo o que lhes podemos pedir e é tudo o que temos de dar. Que o Poder que é deles se embale nos dias nossos passados. Juntos num abraço. Num mesmo sonho, que é Portugal, e que nos valha a antiqua força atlântica! A sabedoria dos poderes partilhados. Dos poderes juntos. Juntas as gerações.
Só o poder do sonho, a emergência da força e a pujança desse velho mar, conseguirá novas aventuras, renovados Descobrimentos. O do que fomos. O do que somos. E, por fim, esse Novo e Redescoberto Poder há-de emergir. Uno. Coeso. E da congregação de todos os poderes – uma Cadeia de União entre todas as Gerações – nascerá a mudança. O milagre da evocação de todas as consciências atlânticas surge como a semente de uma nova consciência, a primeira pedra de uma nova cidadela! A prova de que somos capaz. De mudar. De os ajudar a mudar. Pé ante pé. Forças em braços cruzados. Pés num só caminho. Em sintonia. Elos de uma só corrente. Microcosmos fundidos até se alterar o status quo. Até voltar ao Atlântico. E recuperar o sonho de ser Português. E mudar Portugal. Juntos. Transformar Portugal, primeiro. Reencontrar a Utopia, por fim.