Muito embora se reconheça que os dados recolhidos não reúnem os requisitos suficientes para uma análise estatística, por a amostra ser demasiado pequena, estes tornam possível a identificação de algumas "tendências" e podem servir de guia ou de um manual de boas práticas, para ser usado por quem leva esta questão a peito - que devemos ser todos.
A relação entre paredes, num casal, quando atinge níveis de desajustamento e toca a agressividade verbal ou física é uma questão social e não, como infelizmente se entendeu demasiado tempo, uma questão do foro intímo do casal.
Aqui se deixam alguns apontamentos a propósito retirados das conclusões do relatório apresentado em Outubro/09 e que só agora se analisou aprofundadamente.
1º Caracterização da ofendida e do arguido: As vítimas são mulheres (à excepção de um caso em que houve concomitante denúncia), cujas idades variam entre os 22 e os 48 anos, com nacionalidade portuguesa (tirando 2 casos). Os agressores têm entre 24 e 51 anos e são todos portugueses. Na sua maior parte são casados entre si (14 casos) e noutros vivem em união de facto. Em todos os casos há filhos em comum (apenas num caso os filhos eram maiores). Em 10 casos há apenas 1 filho e em 2 casos as vítimas encontravam-se grávidas de um 2º filho quando foram acolhidas em casa abrigo. A esmagadora maioria tem profissões não qualificadas: trabalham na construção civil (eles) e em serviços domésticos (elas). Em apenas 3 casos a vítima tinha outra profissão: uma cozinheira, uma operária fabril e uma vendedora numa loja. Quanto aos agressores, em apenas 6 casos a profissão era outra: motorista, jardineiro, serralheiro, metalúrgico, militar e técnico de informática.
2º Tempo de Inquérito: quase sempre excede os 10 meses. Em 8 dos processos foi superior a 14 meses e em apenas 1 foi de 4 meses. O que significa, em muitos casos, novas agressões ou tentativas de agressão no decurso desse tempo (a partir do momento em que o agressor sabe que a vítima reagiu e ocorreu denúncia dos factos, as agressões tornam-se mais violentas, o ciclo da violência fecha-se mais e é nessa altura que a vítima corre maior risco de vida). Mesmo afastada do agressor, acolhida em casa abrigo, as tentativas de contacto, ameaças, injúrias e perseguições persistem. A Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro trouxe algumas inovações quanto aos processos por crime de violência doméstica, que passam agora a ter natureza urgente – cfr. artigos 28º e n.º 2 do 103º nº 2 do CPC.
3º Em nenhum dos processos analisados foi utilizada, na fase do inquérito, a possibilidade de tomar declarações para memória futura (artigo 271º do CPP, também aplicável às testemunhas especialmente vulneráveis por força do disposto no artigo 28º da Lei de Protecção de Testemunha - Lei n.º 93/99). Nalguns casos, a gravação foi fundamental para a condenação, reafirmando o seu papel de instrumento de preservação da prova, sobretudo para evitar a vitimização secundária das testemunhas.
4º Não se recorreu à Lei de Protecção de Testemunhas, constatando-se que, nalguns casos, a perseguição a testemunhas familiares da vítima deu azo a processos judiciais autónomos destas contra o agressor. Também aqui a Lei n.º112/20 09 estabelece um direito de protecção (artigo 20º) - já constante da Lei de Protecção de testemunhas.
5º Meios de prova utilizados: em todos os casos houve perícias médico-legais e em todos os casos foram ouvidas testemunhas. A ofendida foi ouvida em sede de inquérito pelo menos 1 vez, sendo que em 3 casos foi ouvida 2 vezes e em 5 casos foi mais de 3 vezes. E o arguido apenas não foi ouvido num caso, por se encontrar desaparecido. Os arguidos ouvidos nunca confessam a prática de qualquer facto que os possa incriminar na prática do crime de violência doméstica e negam aquilo que as ofendidas denunciaram. As testemunhas apresentadas são os filhos (quase sempre menores) ou outros familiares próximos e, nalguns casos vizinhos, colegas de trabalho ou patrões. Quanto a outras provas, realça-se o envio de relatórios sociais da vítima pela casa abrigo que a acolheu em 3 casos. Num caso a requerimento do Ministério Público, nos outros 2 espontaneamente enviado pela equipa técnica da casa abrigo.
6º Ficha de Avaliação de Risco - nem sempre é preenchida pelas autoridades policiais e o relatório apenas foi utilizado em 3 casos, sendo que num deles foi requerido pelo Ministério Público e elaborado pelo respectivo órgão de polícia criminal depois da denúncia (servindo o relatório de suporte para a aplicação da medida de coacção de afastamento), mas as forças policiais, em todos os processos, encaminharam as vítimas para a linha 144, ou qualquer outro apoio disponível.
7º Auto de denúncia padrão: foi o utilizado em quase todos os casos. A incriminação legal feita pelas forças policiais é sempre de Violência Doméstica/ Maus tratos, quando aplica o auto de denúncia padrão. Nos 3 únicos casos em que não foi utilizado o auto de denúncia padrão a incriminação foi, ainda assim, a de maus tratos.
8º Em 5 dos casos analisados havia denúncias/ inquéritos anteriores já arquivados. Em todos, a causa de arquivamento foi a desistência de queixa - o que se afigura um paradoxo, face à natureza pública do crime de maus tratos/ crime de violência doméstica, nas sucessivas redacções do art. 152º do Código Penal dos últimos anos. A explicação será talvez a de seguir a vontade manifestada pela vítima. Para arquivar os Autos por desistência de queixa, o Ministério Público qualifica o/os factos como factos isolados não subsumíveis ao tipo legal “maus tratos” ou “violência doméstica” e antes subsumindo-os a tipos legais que sendo considerados crimes semi-públicos ou particulares admitem a desistência. o que apenas se compreende pelo facto de a falta de vontade da vítima em avançar com o processo levar a que não seja carreada prova para os autos. Mas já não se compreende porque nestes casos não se aplica antes a suspensão provisória do processo, com aplicação de injunções, ou não se averigua a causa da vontade de desistir. Muitas vezes é por medo, pelas ameaças recebidas, por continuar a existir um convívio “forçado” entre vítima e agressor.
9º Promoção e aplicação de medidas de coacção - A única medida aplicada na fase de Inquérito na maioria dos casos (13) foi o Termo de Identidade e Residência - obrigatório nos termos da Lei Processual Penal - artigo 196º do CPP, só num caso foi aplicada uma medida de apresentação periódica, e, nos restantes 6, uma medida de afastamento, com excepção de um único caso, a medida de coacção de afastamento só foi promovida aquando da dedução da acusação.
Na generalidade dos casos em que se aplicou uma medida de afastamento e de proibição de contacto (artigo 200º do CPP), esta foi imposta sem qualquer cominação para o seu não cumprimento, mas nunca se sugeriu que, sendo aquela medida de coacção uma ordem judicial, uma vez que não seja cumprida incorresse o arguido em crime de desobediência (o que, para além de o sujeitar ao agravamento da medida de coacção decorrente da Lei Processual Penal (artigo 203º do CPP), faria com que fosse julgado em processo sumário por crime de desobediência).
Num dos casos, a vítima foi, por várias vezes, perseguida durante o decurso do Inquérito, e teve de mudar de local de trabalho e de casa abrigo. Também aqui a nova Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro poderá trazer novas boas práticas até aqui não verificadas. Nos termos do art. 31º, o Tribunal deve ponderar a aplicação, após a constituição de arguido por crime de violência doméstica, de uma medida de coacção de entre as elencadas no próprio artigo 31º ou no CPP, no prazo máximo de 48 horas.
10º Da denúncia à constituição de arguido, passaram-se, em média, 90 dias. Uma correcta aplicação do artigo 31º da Lei n.º 112/2009 vai certamente resolver esta dificuldade encontrada na promoção de medidas de coacção antes da dedução da acusação.
11º Apoio judiciário: em apenas 2 dos casos não foi requerido pela vítima, que optou por não se constituir assistente. Nalguns processos, o requerimento de apoio judiciário ainda era feito ao abrigo da antiga lei de acesso ao direito e aos tribunais, tendo a mulher tido a possibilidade de escolher a sua/seu defensora/ defensor oficiosa/oficioso.
12º Intervenção das forças policiais: regista-se um bom trabalho na fase inicial do Inquérito, com a detenção em flagrante delito e fora de flagrante delito e com a possibilidade de a vítima poder regressar a casa na companhia da Polícia para recolher bens pessoais. Na maioria dos casos analisados, a vítima apresenta a denúncia nas instalações da força policial que está mais próxima de sua casa, poucas horas depois de ter sido, mais uma vez. agredida em sua casa.
A Lei n.º 112/ 2009 veio, no artigo 21º, legitimar aquilo que as autoridades policiais já faziam em relação a esta matéria: apreender esses objectos pessoais e devolvê-los à vítima.
Em nenhum dos casos houve detenção do arguido em flagrante delito. Também aqui a nova Lei n.º 112/2009, traz novidades. O art.º 30º permite que seja efectuada detenção fora de flagrante delito por crime de violência doméstica, através de mandado do Juiz ou do Ministério Público, se houver perigo de continuação de actividade criminosa ou se tal se mostrar imprescindível à protecção da vítima. E abre, ainda, a possibilidade de as próprias autoridades policiais ordenarem essa detenção fora de flagrante delito por iniciativa própria em determinados condicionalismos (n.º 3 do art. 30º).
13º Acusação: foi deduzida ou por crime de maus tratos/violência doméstica (15 casos), ou por homicídio na forma tentada (1 caso), ou por ofensas à integridade física simples (2 casos). Em 2 casos houve arquivamento dos Autos e não foi interposto recurso hierárquico. E, em nenhum dos casos analisados, houve recurso hierárquico da decisão de arquivamento quanto a outros crimes sobre os quais incidiu o inquérito (violação, tentativa de violação, num caso; maus tratos, num outro) ou quanto ao requerimento de abertura de instrução para acusação sobre esses crimes. Em apenas 2 casos foi requerida a abertura de Instrução, sendo que, num deles, foi requerida pelo arguido.
Apenas num caso, dos 20, foi deduzida acusação particular pelo crime de injúrias e, apenas em 5, a vítima deduziu pedido de indemnização civil pelos danos sofridos (danos patrimoniais e não patrimoniais) e, num caso, o pedido de indemnização civil foi requerido pela Segurança Social, para se ressarcir das despesas que teve de suportar com os dias de baixa por doença que a vítima teve de requerer.
O relatório completo consta do site http://www.apmj.pt/, que é um precioso "instrumento de trabalho" para os advogados e juristas que lidam com estas matérias. Finalmente, o direito penal olha para este tipo de crimes com olhos de ver, sem mergulhar a cabeça na areia. Espera-se, dos advogados e juizes, a sensibilidade para olhar para a frente e de frente para o problema. Dá-se aos agredidos uma réstea de esperança e de fé no sistema. E a questão é demasiado séria para os desapontar.