domingo, 15 de novembro de 2009

"Ouvidos ocultos" ou o regresso do medo ...

O Ricardo Costa publica um artigo no Expresso que demonstra algumas das preocupações que assaltam o cidadão comum.
Chamou ao artigo "Ouvido Oculto" e acho que fez muito bem.
Da minha actividade de consultora resultam alguns contactos mais ou menos próximos com gente mais ou menos conhecida da arena política, social e económica.
Recordar-se-ão de vos dizer que, por força da minha actividade, estou, pelo menos, dois dias por semana, no Teatro Nacional de São Carlos e na Companhia Nacional de Bailado e é um oásis. Entre cenários - prepara-se agora a "Bela Adormecida" e o cenário é lindo - veludos, adamascados, sedas, cetins, mil cores espalhadas pelas ante-camaras (sobretudo a das costureiras) e canto após canto preparado intermitentemente, toca o telefone e ... não atendo!
Ficou-me o trauma destes "ouvidos ocultos" quando era auditora do Tribunal de Contas ...
Não atendo porque constato que parte dos meus conhecidos está atingido pelo trauma do "não falo", "não falo agora", "não falo aqui", "não fales"...
Lembro-me quando era pequena de que a minha mãe dizia "as paredes têem ouvidos", eram os tais "ouvidos ocultos".
Tenho amigos que já não falam ao telefone, outros que falam em código,com receio de, por estarem em linha cruzada (linha de fogo) com amigos "no Poder", verem desmanteladas as suas vidas de um momento para o outro.
E falo obviamente das suas vidas pessoais!
Explico, acompanhando o Ricardo Costa.
"Passou apenas uma semana para se confirmar o óbvio: se Armando Vara esteve sob escuta meses a fio, então o primeiro-ministro também foi escutado meses a fio. É bom que a Justiça saiba lidar com o que tem em mãos."
E, agora, explica o Ricardo: é que Armando Vara não é apenas vice-presidente do maior banco privado do país, ex-ministro e ex-dirigente do PS, é também é um dos melhores amigos de José Sócrates.
José Sócrates confirmou ser um amigo do peito.
Quando Vara saíu do Governo em 2000, corrido por Jorge Sampaio, Sócrates ficou ao lado do amigo. Era seu amigo, continuou seu amigo.
Foi um daqueles episódios tristes em que descreio da política e só fico a desejar enfiar-me na minha quinta, a criar cães, e a brincar de dona de cavalos com o Zé - eu, cães, cavalos, terra ... cheiro a terra.
Voltando a Sócrates, podia ser como alguns dos que julgamos amigos e que promovidos a uma coisita de nada, só falta dizer que nem se recordam de onde nos conhecem, se é que não dirão mesmo que não nos conhecem de todo. Acreditem, já me aconteceu!
Mas não, Sócrates, acreditando que a vida é redonda, aguardou.
Depois daquele episódio de treta que marcou Guterres, Vara e Sócrates para sempre. Guterres porque percebeu que a sua força política estava "de finados", sai um ano depois. Vara julgou que a sua carreira política tinha acabado. Sócrates impávido ficou de assistente, limitou-se a espectador, e expectante, ao chegar ao poder, tratou de reparar a injustiça, agindo não contra o autor da desfeita, mas em prol do injustiçado,e promove Vara na Caixa Geral de Depósitos.
Por um amigo destes, todos dobramos os sinos!
Seguiu-se a ida para o BCP. A partir desse dia, Vara, "O amigo" assume a presidência e inevitavelmente, a mesquinhez - qualidade intrínseca a quem é pequeno de espírito e de alma - toma conta das mentes mais torpes deste país.
Independentemente da razoabilidade, da proporcionalidade, das medidas tomadas pela PJ, assistir de poltrona a escutas judiciais que envolvem dois amigos de sempre deve ser um exercício irresístivel para almas daquelas. Amigos como estes não falarão só de negócios - provavelmente nem falarão de negócios, pelo menos ao telefone, que as conversas querem-se lacónicas e curtas - fá-lo-ão depois de um serão, um ou dois Armagnac, um charuto ou cigarrilha e "en passant". Amigos destes terão mais do que falar.
E por isso hoje os nossos amigos falam pouco ao telefone ou não falam de todo.
É que está por comprovar se "o segredo de justiça" resistirá a ser desventrado um destes dias e temos na primeira página de um qualquer jornal - e por contágio, nas primeiras páginas de todos os outros, e na primeira notícia dos órgãos de comunicação falados - algo mais intímo, dito entre dois amigos que confiam um no outro, e que não desconfiaram dos "ouvidos ocultos", insensatez, inocência talvez, mas o que encheu dezenas de cassettes será ouvido por "ouvidos ocultos".
E com esses todos nos começamos a preocupar.
Com (como dizia o Ricardo: a "mais simples e banal conversa."
Resta esperar para testar o profissionalismo dos "ouvidos ocultos", que, não bastasse o Rui Pereira a querer infiltrar "ouvidos ocultos" na máquina do Estado, agora ameaçam a nossa privacidade como se todos fôssemos suspeitos ou amigos de suspeitos.
Oxalá todos tenhamos amigos leais como Sócrates ou bem podemos esquecer os desabafos ao telefone.
É que um qualquer desabafo pode sair-nos muito caro. Melhor para os psicólogos e psicoterapeutas! Deixemos todos de ter amigos e passemos ao divã!
Não concordam? Ah! De preferência que os homens do divã garantam o segredo profissional (melhor que o de Justiça, de preferência, também)!