sábado, 23 de junho de 2012

"Portugal, o país com mais "doutores" (e "engenheiros"), explicado por Kathleen Gomes,


"Portugal, o país com mais "doutores" (e "engenheiros")
Por que somos um país de "doutores"? Porque não somos um país
de doutores. Não há nisto contradição, a diferença está nas aspas
É tão português quanto a sardinha assada, a roupa à janela ou "passar pelas brasas". Para um inglês, muito provavelmente, a expressão "I"m going to go through the heats" faz tanto sentido como ter "Dr." ("doctor") impresso no cartão de crédito antes do nome. Ou seja, sentido nenhum.
O "senhor doutor", como o pastel de nata ou o fado, é uma especificidade do "ser português" - ou, pelo menos, assim surge consagrado no livro Nacional e Transmissível de Eduardo Prado Coelho (2006, edição Guerra e Paz).
O "senhor doutor", em todas suas possíveis gradações (incluindo o não menos valorizado "senhor engenheiro), não é mera figura de retórica universitária: ele saiu da academia e permeou toda a sociedade, os nossos bairros, engrossou as filas nos bancos (alguém a protestar porque pediu que o seu nome viesse com "dr." e nada; um título no cartão multibanco é tão simples de pedir como o acompanhamento de um bife no restaurante), passou-nos à frente nas repartições, está na ponta da língua da secretária da direcção que nos atende o telefone: "Bom dia, é possível falar com X?" "O senhor doutor X...?", corrige ela, prontamente, como quem diz "mais respeitinho" e sabemos que a falta de reverência pode ter sido decisivo para nunca chegarmos à fala com X - perdão: senhor doutor X.
O historiador Rui Tavares inventou um nome para isso, numa recente crónica no PÚBLICO: "titulocracia". A recente polémica em torno da licenciatura do engenheiro-não-engenheiro José Sócrates veio lembrar-nos a importância do que chamamos às pessoas quando não as chamamos (apenas) pelo nome. Veio lembrar-nos que somos um país de "doutores" e "engenheiros", nem todos legítimos (mas, porventura, não exactamente ilegítimos, já que podemos escolher a forma como queremos ser tratados num impresso bancário sem que ninguém nos peça habilitações), um país onde o aparato da forma de tratamento denuncia o nosso sentido das aparências.
Num bar do bairro lisboeta da Ajuda, onde vive a escritora Maria Velho da Costa, "quando não se sabe o que o cliente é, diz-se "o senhor doutor" ou "a senhora doutora"". É "uma forma de demonstrar respeito", prática antiga comprometida pelo perigo de extinção do comércio tradicional.
Porque é que em Portugal existe uma veneração pelos títulos académicos que qualquer pessoa com um bocadinho de mundo não encontra lá fora? Por que somos um país de "doutores"?
"É porque não somos um país de doutores", responde o sociólogo Manuel Villaverde Cabral. "Somos um país onde os diplomas universitários e os estudos em geral são um bem muito escasso. Que foi escassíssimo durante muito tempo. Temos os níveis de escolaridade mais baixos da Europa - de longe."
Não é o único a pensar assim. Maria Manuel Mota, 35 anos, investigadora do Instituto de Medicina Molecular com doutoramento feito em Londres e pós-doutoramento em Nova Iorque - que lhe deram, também, um currículo em informalidade anglo-saxónica -, nota que "fomos um país sem educação durante muitos anos, estamos a dar os primeiros passos". É como que um deslumbramento nosso, isto do "senhor doutor"? "É isso. É um bocado novo-riquismo."
O "doutor" democratizou-se
João de Pina Cabral, antropólogo especializado em identidade social e pessoal, define os títulos académicos como "símbolos de um novo estatuto burguês", a par dos "casamentos pomposos, os BMWs pretos, as gravatas brilhantes, os cabelos louros, as férias no Brasil..." A sua linhagem histórica remonta aos "processos de constituição e de chegada ao poder da burguesia nos meados do século XIX". Acontece que, com a massificação do ensino universitário privado em Portugal, nas décadas 80 e 90 - "em que milhares e milhares de pessoas, cujos pais eram oriundos de meios mais ou menos populares, social e culturalmente oprimidos, tiveram acesso a formas de vida que eles identificam como burguesas, com o correspondente estatuto social" - o "doutor" democratizou-se, banalizou-se. Dito de outro modo: "ser "doutor" já não chega", hoje, para distinguir alguém.
Sim, mas "ainda serve para muita coisa", diz o filósofo José Gil, autor de Portugal Hoje: O Medo de Existir (2004, ed. Relógio d"Água). "Se eu tratar alguém por "doutor" ele adquire uma aura de poder. Vou adaptar os meus códigos de gesto e de fala relativamente ao título. O nome não diz nada, "José Gil" não diz nada." Quando regressou de Paris, onde viveu e leccionou filosofia durante anos, "não estava realmente habituado" a que o tratassem por "doutor", o que, em Portugal, acontecia "a cada instante", fazendo José Gil sentir "quase uma espécie de vergonha". "Até que percebi que, se eu dissesse "José Gil", esperava horas. E se dissesse "senhor professor", a coisa resolvia-se imediatamente." O que leva o filósofo a dizer: "É uma relação mágica que se estabelece com a pessoa".
"É raro pensarmos explicitamente sobre o assunto, são esquemas de significado que nós operamos de forma subconsciente", diz João de Pina Cabral, mas que faz diferença, faz. "A verdade é que quando uma pessoa me chama "senhor João" e não "professor" ou "doutor Pina Cabral", eu não deixo de reparar que isso está a acontecer. Que essa pessoa está a dizer qualquer coisa com a forma como optou por me chamar." Um banco português costuma ou, pelo menos, costumava presentear os seus clientes com "Dr." no cartão multibanco, mesmo que estes não o tivessem solicitado. "Pode ser uma maneira de valorizar a pessoa em questão", sugere o porta-voz de outra instituição bancária (e depois, se é certo alguém pedir novo cartão por omissão, é menos certo fazê-lo por excesso de diligência).
De Tony ao Prof. Cavaco
A importância do título é visível, desde logo, na classe política. Em França, o Presidente da República é tratado por "monsieur le président" ou "monsieur Chirac", o equivalente a "senhor" em português. Em Inglaterra idem aspas: "Ninguém se lembraria de chamar ao Blair "doctor"", nota Manuel Villaverde Cabral. (Mais: o primeiro-ministro inglês é Tony, do mais familiar que pode haver). Em Portugal, por contraste, diz-se "Professor Marcelo" ou "Professor Cavaco", diz Villaverde Cabral, "como se isso acrescentasse uma mais-valia". Segundo o sociólogo, isso denota "a pouca valorização", entre nós, do político profissional e da classe política em geral. Ou seja, o título académico é uma forma de compensar o "menor respeito" que o "imaginário colectivo" tem pela classe política, notabiliza-a. Daí a "prevalência de uma classe política portuguesa com uma qualificação enorme, exagerada, quase anormal por comparação com outros países", conclui Villaverde Cabral.
Maria Manuel Mota assina "Maria" no fim do seu mail. Quando alguém lhe chama "doutora", ela faz questão de dizer - "talvez porque tenha trabalhado fora" - "pode tratar-me por Maria". "Em Inglaterra, o director do instituto [National Institute for Medical Research, onde completou o doutoramento em 1998] era "Sir". Eu era mera aluna e nem sequer trabalhava directamente com ele, mas para nós ele era o "Keith" [Peters] como eu era para ele a "Maria"." Seja "Sir" seja Prémio Nobel (como o marido dela pôde comprovar), o tratamento preferencial nos países anglo-saxónicos é o nome próprio ou o "you". A língua ajuda: o "you" serve para tudo, trato formal ou informal, com ou sem protocolo. Sinal de sofisticação, de simplificação democrática, nota Eduardo Prado Coelho no seu livro.
Maria Velho da Costa lembra que, nos seus tempos de leitora de português no King"s College em Londres, na década de 80, "os alunos tinham imensa dificuldade em perceber as várias fórmulas de addresse" existentes na língua portuguesa. Você, tu, o senhor, vossa excelência, senhor doutor, senhor professor, senhor engenheiro, excelentíssimo senhor, sôtor, senhora dona... Como explicar a um não-português a diplomacia linguística portuguesa, as suas possibilidades caprichosas? Como explicar-lhe, por exemplo, o sentido de chamar "engenheiro" a alguém que não pratica engenharia?
É, sobretudo, uma imensa variedade, essa "altíssima e subtil gama" de formas de tratamento que Maria Velho da Costa aponta como uma singularidade portuguesa. "Pelo menos, todos os estrangeiros sentem isso", corrobora o linguista Ivo Castro. "Talvez conservemos formas de tratamento muito subtis que sociedades mais igualitárias não sabem usar." Mas a culpa não é da língua. "É a sociedade que tem uma sensibilidade para compartimentações e desníveis sociais que outras sociedades não têm. Para dizer aos outros em que ponto da sociedade é que achamos que eles estão em relação a nós."
Tantos médicos!
Sem mapa nem manual, um estrangeiro pode perder-se nas fórmulas portuguesas de tratar o outro - e podemos presumir que um nativo também se perde. Prado Coelho narra uma história exemplar em Nacional e Transmissível: "Durante a preparação de uma Comissão Mista, lembro-me de apresentar aos franceses a lista dos participantes portugueses, recheada de ilustres doutores, e um deles comentar: "Tantos médicos!" Tive de lhe explicar que médicos não havia nenhum."
João de Pina Cabral diz que "para os estrangeiros que vêm da Europa do Norte, e sobretudo para os anglo-saxónicos, o que é estranho em Portugal é que praticamente todas as pessoas que eles encontram são "doutor", "engenheiro" ou "arquitecto". Somos como a Itália, há um certo populismo nisso, que os anglo-saxónicos vêem como distintamente ridículo. É que eles também dão muita importância aos títulos - aliás, posso até dizer que dão mais que nós: para os americanos e os ingleses só muito poucas pessoas é que têm direito ao uso dos títulos académicos de "doutor" ou "professor". Em Inglaterra, só mesmo os professores catedráticos no topo da carreira é que usam este último título, não basta ter uma pós-graduação. Já no Brasil é ao contrário: tudo o que é patrão leva "doutor"..."
Já os Estados Unidos, nota Maria Mota, têm "uma cultura muito pragmática". "Não é importante ter tirado o curso xis mas aquilo que a pessoa atingiu na vida. É muito normal conhecermos um americano e daí a não sei quantos minutos estarmos a discutir quanto é que cada um ganha."
Entretanto, em Portugal, levamos mais tempo do que isso só a escrever um mail.
"É muito mais fácil mandar um mail a alguém que possa tratar por tu. A formalidade implica perder mais tempo", diz a bióloga. "Às tantas não podemos dizer o que queremos dizer apenas numa frase, temos de ser mais formais. Não é uma coisa natural, tenho de pensar como devo tratar a outra pessoa."
Há uma fotografia por debaixo de "Senhor Doutor" no livro-álbum de Prado Coelho. É uma caixa de graxa." Jornal Público, 19 de Abril de 2007, Kathleen Gomes