Jules Renard disse “Não
despertes o desgosto adormecido”. Em tempos de crise, segundo o nosso Primeiro,
geram-se grandes oportunidades. Diria que se geram, também, grandes oportunistas.
A latere das contas
públicas , que resvalam – lembre-se que a Unidade Técnica de Apoio Orçamental
detetou uma “incorreção” nas contas que resulta na diminuição das receitas com os impostos indiretos de
quase o dobro da indicada pelo Governo – mas sempre com reflexos diretos
nestas, o Tribunal de Contas surge como principal protagonista da novela das
Parcerias Público-Privadas, dizendo-se enganado. De entre os juízes conselheiros
que se apoquentaram com a correção dos negócios sujeitos a visto, nos anos em
que fui auditora no TC, só Carlos Moreno se insurgiu na matéria. Foi uma voz inoportuna.
Como tinha sido “inoportuno” quando foi Inspetor-Geral de Finanças. Nem na IGF
nem no TC lhe fizeram a vida fácil e foi sempre visto e tratado como um outsider
o que fez com que, pessoalmente, tivesse acerca dele a melhor das impressões. O
futuro confirmaria quem se preocupava com o quê, porquê e quanto! De nada vale
virem os restantes armarem-se em virgens ofendidas quando nunca tiveram com ele
nem voz nem postura solidária. Se há um herói, um paladino, no caso, é mesmo só
Carlos Moreno. A sua formação pessoal e a sua preparação profissional assim o
ditaram! Fosse ele o Presidente do TC que quanto incomodaria o status quo
vigente e as madonas regaladas no conforto das suas chaises-longues! Podia ser
um dia alguém como ele o Presidente? Muito teria este País de mudar! Muito teríamos
nós de mudar! Mudarem os critérios de escolha e de nomeação, desde logo!
Sobre isto muito haveria a dizer, mas do pouco que importa, aqui e
agora, dizer, saliento o seguinte. O Tribunal de Contas, de quando em vez, vem
a lume, ora denunciar ora criticar esta ou aquela área da res publica, sem que
nada nem ninguém lhe dê ouvidos. Desde o fenómeno da proliferação desmesurada
das empresas públicas e municipais, em que não teve
mão, até ao mais recente quadro censurado das SCUT. Um ano depois da introdução
das primeiras portagens é possível concluir que a renegociação das PPP para o
efeito só serviu interesses dos concessionários e dos bancos, revertendo o
ónus, por inteiro, para o utilizador-pagador. "Que diabo se faz no
Tribunal de Contas? – perguntou Carlos. – Joga-se? Cavaqueia-se?” e Taveira
responde ” - Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo… Até contas!” (‘Os
Maias’, Eça de Queiroz, 1888, passagem do diálogo entre Taveira e Carlos Maia).
Quem nomeia o Presidente do Tribunal de Contas? Um “tribunal”
independente? Sê-lo-á no texto da lei! Como o são outros organismos e serviços
que dizem sê-lo mas cujos dirigentes máximos dependem do fator “confiança
política” para a sua nomeação. E não se trata de um comentário visando este ou
aquele presidente ou dirigente, trata-se de uma constatação genérica! Querendo
pegar em quem manda em quem ou em quem influencia quem, que se chame os bois
pelos nomes!
O “desespero é
desperdiçar as oportunidades”, dizia Richard Bach, autor de “Fernão Capelo
Gaivota”, talvez tenha chegado a hora de percebermos que o desespero atual pode
mesmo ser uma enorme (e não desperdiçada) oportunidade. Começando por nos
perguntarmos onde está A Falha? O que Falha? Quem elabora as leis que regem o funcionamento
das instituições de supervisão e de controlo das contas públicas? Quem as elabora
quer mesmo que o sistema vigente se altere?
O “desgosto adormecido”
é aqui irmão do desespero, mas bem eu poderia ser o pai da oportunidade. Não do
oportunismo. Mas da oportunidade. Tempo de irmos ao fundo da coisas, à raiz do
mal, ao cerne do problema.
Porque não foram os
famosos anexos/contratos adicionais sujeitos à fiscalização prévia do TC?
Porque a lei permitia que não o fosses. A permissividade do Código dos Contratos
Públicos, redigido pelos maiores escritórios de advogados que se abonam em
proveito próprio como consultores e litigantes dos interesses dos concessionários
que se alimentam das tais receitas, como vampiros que nos sugam o pouco sangue
que nos resta em tempos de pobreza, a isso levou. Porque foi o Estado
permissivo a legislar, confuso a disciplinar, dúbio a regular? Porque os
interesses de poucos se insurgiram ante o interesse de todos. É que poucos
arrecadam as fabulosas receitas provindas dos desastrosos contratos que
políticos menos preparados e conscientes assinaram de cruz (ou talvez fosse até
uma atitude ponderada mas não no interesse público) mas todos pagamos o elevado
custo da fatura. E, a circunstâncias atuais, pagamos do que já não temos.
Foi já acordado o
desgosto adormecido! O desespero instala-se! As aves de rapina alongam as suas
asas oportunistas! E o que sobra somos este povo desanimado, desalentado e de braços
caídos. Quando é o Tempo de acordar? Amanhã, estou convicta, “Não haverá mais
tempo.” (Apocalipse X-VI.