segunda-feira, 26 de julho de 2010

Uma muito provável tragédia jurídica, segundo o In Verbis


Francisco Teixeira da Mota (Advogado) Público 24.07.2010
O ilustre causídico diz que era desejável "que não fosse aceite como inevitável a impunidade dos cidadãos prevaricadores.
Uma pequena notícia da autoria de António Arnaldo Mesquita, no passado dia 15, anunciava nas páginas deste jornal Uma muito provável tragédia jurídica, que contribuirá para alimentar o sentimento na opinião pública de que o sistema criminal português assegura a impunidade aos arguidos de crimes complexos, com advogados sabedores, assim descredibilizando a Justiça.
A tragédia dá pelo nome de Acórdão 195/2010 e foi proferida pelo Tribunal Constitucional (TC) e veio dizer que é inconstitucional o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de que o tempo que os processos-crime estão no Tribunal Constitucional não conta para efeitos de prescrição dos crimes que estejam em causa.
Actualmente, na sequência de uma decisão do STJ de 12 de Março de 2009, era precisamente este o entendimento, pelo que os recursos para o Tribunal Constitucional, que podem arrastar-se anos, não tinham quaisquer vantagens para os arguidos em termos de prescrição.
É certo que a fundamentação jurídica desta decisão do STJ, que afastara o tempo dos recursos no TC da contagem do tempo para efeitos da prescrição, era, no mínimo, bastante discutível, mas tinha uma inequívoca vantagem sistémica: evitava, na prática, que o recurso para o Tribunal Constitucional se convertesse numa manobra dilatória para se alcançar a prescrição do processo.
Mas com esta, juridicamente correcta, decisão do TC, do passado dia 12 de Maio e caso a mesma se venha a confirmar em futuros processos, o que é natural, a possibilidade de prescreverem numerosos crimes praticados ao longo dos últimos anos é enorme. Se o bastonário da Ordem dos Advogados já tinha anteriormente alertado para o risco de prescrição dos crimes em causa no "processo casa Pia", com este entendimento da prescrição, não estamos já perante um risco, mas uma certeza. Neste, como noutros casos.
Convém lembrar que a prescrição é um importante e sadio instituto jurídico, pois que, decorrido um certo período de tempo sem penalização (período este que varia de acordo com a gravidade dos crimes), já não fará muito sentido punir o transgressor, nomeadamente por se considerar ineficaz a sanção, dado o tempo decorrido.
Mas convém também não esquecer que a prescrição não é uma "vaca sagrada", sendo até uma figura praticamente inexistente nos sistemas jurídicos anglo-saxõnicos. Por isso, vimos Ronald Biggs, o assaltante do comboio-correio inglês, ter de cumprir vários anos de prisão quando regressou a Inglaterra passados mais de 30 anos de "exílio" no Brasil ou, no caso de Roman Polanski, o esforço das autoridades norte-americanas para conseguirem a sua extradição por um crime sexual praticado há mais de 30 anos.
Certo é que convém, desde já, pensar em como obstar a que esta decisão do TC venha a resultar em mais impunidade num sistema, como o nosso, em que a mesma tende a ser percepcionada como a regra em determinado tipo de crimes ou criminosos. Poderá passar por uma alteração da lei, de forma a assegurar-se que a passagem dos processos pelo TC não contará paia efeitos de prescrição, mas tal solução só valerá para o futuro. Ou seja, os crimes que já foram praticados, cujos processos já se arrastam pelos nossos tribunais ou se venham a arrastar, não serão abrangidos por essa eventual alteração legal.
A verdadeira solução passaria por uma mudança do modus vivendi do Tribunal Constitucional, que implicasse mais celeridade na decisão dos processos, sem prejuízo do respeito pelos prazos processuais estipulados. Não seria, assim, o TC conivente com estes abusos do sistema, mas a probabilidade de isso acontecer é muito reduzida, porque a falta de produtividade instalada de alguns juizes faz-nos suspeitar que as prescrições se vão suceder, para bem de alguns e mal de muitos. Mas a actual crise financeira e o descrédito instalado relativamente ao regime democrático não constituem, no entanto, razões extraordinárias que justifiquem a criação de um qualquer governo de salvação ou de união nacional. Bem fazem o primeiro-ministro e o líder do maior partido da oposição em só quererem trocar de lugar após a realização de eleições.
Seria verdadeiramente "contra natura" democrática que surgisse agora um Governo de coligação dos três partidos do designado "arco da governação", como foi aventado. A conflitualidade política e as imperfeições do sistema não representam nada de grave ou de patológico, antes fazendo parte do normal funcionamento do regime democrático, como o salientou há dias o presidente da Assembleia da República.
O horror ao conflito, às imperfeições e às divergências e o sistemático apelo às "uniões nacionais", tão do gosto de alguma da nossa direita, conjuga-se, muitas vezes, com a invocada necessidade de um "capataz" suprapartidário para nos dirigir, ideia que parece estar subjacente à "represidencialização" do nosso sistema político contida na proposta de revisão constitucional apresentada pelo PSD. E digo parece porque é difícil perceber o exacto sentido da proposta apresentada, que surge como algo contraditória. Creio ser inequívoco que nestas discussões político-jurídicas se devem rejeitar quaisquer soluções que abram caminho para figuras pretensamente "salvíficas" e "independentes", que visem ressuscitar, nestas comemorações dos 100 anos da República, figuras como Pimenta de Castro ou Sidónio Pais.
Da parte da Justiça, para evitar mais desprestígio do sistema poliítico democrático e soluções desse tipo, seria bom que não fosse aceite como inevitável a impunidade dos cidadãos prevaricadores e como normal a falta de produtividade de alguns juizes/tribunais."