sexta-feira, 30 de julho de 2010

A(S) DOR(ES) DE ANTÓNIO FEIO


Soube-se logo. Foi-se para outro lugar o actor e encenador António Feio. Detestou o último ano e meio, porque um protagonista que não se contava entrasse em cena o assaltou sem texto nem enredo nem ensaio. Representação negra, como um anjo da morte, o cancro convidou-se e entrou-lhe corpo adentro. Encarou-o, não como um demónio, mas como um palhaço - apesar de este, ainda em Setembro, lhe ter levado a sua querida irmã. Ele fez-lhe frente e continuou em frente. "Estou preso a um medo de morrer e, ao mesmo tempo, agarrado à esperança de uma cura", disse em Outubro. "O humor tem ajudado e essa é a minha grande arma. Se pudesse, matava o bicho a rir", dizia. Ontem, às 23.25, rodeado pela família e pelos amigos mais próximos, incluindo os quatro filhos (Sara, Bárbara, Kiki e e Filipe), terá dito "Cheguei ao fim da linha".
Se não se tivesse apaixonado pela arte de actuar tinha-se deixado ir pela música. Nas artes de bem representar e na cultura cénica era um mestre. Com os amigos José Pedro Gomes e Miguel Guilherme provocaram o riso a mais de 80 mil pessoas na peça Arte (1998) e até o ano passado nos Contemporâneos riu quando Nuno Lopes lhe ofereceu o Globo de Ouro que acabara de ganhar.
Iniciou-se com O Mar, de Miguel Torga, encenado por Carlos Avilez, aos 12 anos. Em 1974, volta a Portugal depois de uma incursão por Moçambique, com uma ideia na manga: ser actor. Afirmava, sorrindo, que entrara na profissão "pela porta do cavalo" – por não ter frequentado o Conservatório. Passa pela televisão, no Clubíssimo, de Joaquim Letria (1988) em que, com José Pedro Gomes, aparelharam para a vida de fazer rir. No Auditório Carlos Paredes, em Benfica, deu aulas de representação, e estreou-se em 93 Inox - Take 5, seguido de O Que Diz Molero (94) e, em 97, a primeira d’A Conversa da Treta. Vai para o Villaret e faz algo de inédito “Um teatro que é entretenimento, mas que também põe a pensar quem o vê". Ainda agora, nos ofereceu duas peças: Vai-se Andando, com José Pedro Gomes, e Homens de Escabeche, com José Fidalgo e Joana Estrela. Nos últimos meses foi avô, festejou a vitória do Benfica no campeonato e foi condecorado pelo Presidente da República. O seu maior defeito – dizia – era a preguiça, a sua maior qualidade – a persistência.
E foi essa persistência, no teatro e na vida, que lhe permitiu aquele sorriso largo e aberto até ao fim. Quando alguém for apanhado por um daqueles bichos, tem nele um exemplo de como o matar: a rir, ou pelo menos, a sorrir.
Porque o sorriso é uma força da vida e o riso uma arma contra o(s) mal(es).
Lamentou-se de não conseguir representar Portugal condignamente no estrangeiro porque a isso a doença o impedia, engano seu, representar-nos-ía, cá dentro e lá fora, com a dignidade dos grandes, a elevação dos que superam a vida. Lamentava-se, também, de não haver políticos que nos representassem condignamente. Em vida, não lhe demos razão. Não havia porque acrescentar dor à sua dor. Agora que, por certo não nos ouve, somos nós que acrescentamos a nossa dor à dor que já era a sua: onde estão os políticos que nos encham de orgulho por sermos portugueses? Contam-se pelos dedos das duas mãos? De uma mão? Esta é uma das questões que nos deixou em aberto e esta, sinceramente, vai-nos tirando o riso e, acho até, que já nos “matou” o riso.
Vai com Deus que nós estamos contigo, amigo Tó!