O meu muito querido avô Zé Melão tinha coisas tão engraçadas. Nem a minha avó e muito menos a minha mãe o entendiam ou lhe achavam grande graça, tal era a sua originalidade e sentido satírico. Diz-se que uma vez andava para cá e para lá, como que à procura de alguma coisa, e lhe perguntaram o que procurava ao que respondeu: uma peça. A peça do ralé. Nunca ninguém entendeu a piada, mas a vida tem vindo a dar-me umas ideias sobre o que pode ser a dita peça.
Estava na segunda-feira numa reunião com um Ministro do actual Governo, quando reparo que, a um canto, estava um jovem, naturalmente com ambições (não que seja contra a ambição, mas gera-me algum vómito, a “má” ambição) a ocupar, um dia – se Deus continuar distraído - a cadeira que o outro desocupará (pelo andar da carruagem - mais coisa menos coisa - lá pelos setenta anos!), acenando a cabeça em sistemática concordância, como se fosse um pêndulo (lembrando os cãezinhos, há muitos anos, se viam na parte traseira das viaturas e que diziam que sim que sim durante toda uma viagem, nem que ela durasse o prazo de rodagem).
Reparei, por acaso, que, às vezes, o Ministro se perdia na resposta, ou porque se esquivava ou porque nem se lembrava da pergunta, e que, o jovem insistia em concordar, fosse no que fosse, dando - e ostentando - o seu sinal afirmativo, a todas as declarações, como se bebesse daquela douta sabedoria e autoridade, e herdasse aquela habilidade para tornear, para ziguezaguear, qual aprendiz de feiticeiro!
Temos Ministro, pensei, o rapaz vai longe! Naquela engrenagem (que a política é isso mesmo), aquele jovem e a sua obediente e subserviente cabecinha eram, nem mais nem menos, do que “a peça do ralé”, porque são estas “peças” que permitem que tudo se encaixe, tudo role, na perfeição, naquela rotineira dinâmica, e a engrenagem nunca mude de "peças" nem se revitalize.
Mais uma vez, compreendi o que o velho dizia, pela Rua dos Pardais adiante, abaixo e acima, como se procurasse a filosofia na ponta da enxada – a peça do ralé. Ele, que nunca foi peça de nenhuma engrenagem, porque era um homem sobre o qual ninguém conseguia exercer qualquer tipo de autoridade, ciente de fazer o que bem lhe dava na gana, farto da incompreensão dos outros, de ser um homem fora da conjuntura, alguém que não andava pelas regras do sistema, provavelmente, também - admito - , pode ter chegado, já cansado, a procurar a tal peça que tão bem encaixava nos outros e que ele nem pressentia nem percebia, e, talvez, se a encontrasse, tentasse ver se também lhe servia para lhe facilitar a vida em contra-maré.
Nunca a encontrou, foi sempre um homem diferente, com graças incompreendidas, um homem livre e um avô maravilhoso. O Zé Melão nunca encontrou – graças a Deus a peça do ralé – eu também não, se calhar por causa dele não a ter encontrado e de não me a poder ter passado por herança - e agradeço-lhe por isso. Olhei para aquele jovem e só consegui pensar que o avô dele, por certo, seria um fiel detentor daquela peça e que pertenceria a uma qualquer engrenagem e que ele, (des)abençoado, herdou aquele conformismo, aquele assentimento, aquela reverência. Obrigado, avô, não sei se a peça existia, se era mera alegoria, nem conheço a quem serviu. Lá, por Vale de Cavalos, ninguém é de mau feitio mas também ninguém é de lamber botas. O meu avô era original, único, diferente, excepcional. Era uma peça fora do ralé. Tinha mau feitio e rogava pragas ao prior, tomava demandas ao feitor, e jamais baixava a cabeça. Também eu lhe herdei as manias, sempre soube que era e quero continuar a ser uma peça fora do ralé. Obrigado, avô.
Estava na segunda-feira numa reunião com um Ministro do actual Governo, quando reparo que, a um canto, estava um jovem, naturalmente com ambições (não que seja contra a ambição, mas gera-me algum vómito, a “má” ambição) a ocupar, um dia – se Deus continuar distraído - a cadeira que o outro desocupará (pelo andar da carruagem - mais coisa menos coisa - lá pelos setenta anos!), acenando a cabeça em sistemática concordância, como se fosse um pêndulo (lembrando os cãezinhos, há muitos anos, se viam na parte traseira das viaturas e que diziam que sim que sim durante toda uma viagem, nem que ela durasse o prazo de rodagem).
Reparei, por acaso, que, às vezes, o Ministro se perdia na resposta, ou porque se esquivava ou porque nem se lembrava da pergunta, e que, o jovem insistia em concordar, fosse no que fosse, dando - e ostentando - o seu sinal afirmativo, a todas as declarações, como se bebesse daquela douta sabedoria e autoridade, e herdasse aquela habilidade para tornear, para ziguezaguear, qual aprendiz de feiticeiro!
Temos Ministro, pensei, o rapaz vai longe! Naquela engrenagem (que a política é isso mesmo), aquele jovem e a sua obediente e subserviente cabecinha eram, nem mais nem menos, do que “a peça do ralé”, porque são estas “peças” que permitem que tudo se encaixe, tudo role, na perfeição, naquela rotineira dinâmica, e a engrenagem nunca mude de "peças" nem se revitalize.
Mais uma vez, compreendi o que o velho dizia, pela Rua dos Pardais adiante, abaixo e acima, como se procurasse a filosofia na ponta da enxada – a peça do ralé. Ele, que nunca foi peça de nenhuma engrenagem, porque era um homem sobre o qual ninguém conseguia exercer qualquer tipo de autoridade, ciente de fazer o que bem lhe dava na gana, farto da incompreensão dos outros, de ser um homem fora da conjuntura, alguém que não andava pelas regras do sistema, provavelmente, também - admito - , pode ter chegado, já cansado, a procurar a tal peça que tão bem encaixava nos outros e que ele nem pressentia nem percebia, e, talvez, se a encontrasse, tentasse ver se também lhe servia para lhe facilitar a vida em contra-maré.
Nunca a encontrou, foi sempre um homem diferente, com graças incompreendidas, um homem livre e um avô maravilhoso. O Zé Melão nunca encontrou – graças a Deus a peça do ralé – eu também não, se calhar por causa dele não a ter encontrado e de não me a poder ter passado por herança - e agradeço-lhe por isso. Olhei para aquele jovem e só consegui pensar que o avô dele, por certo, seria um fiel detentor daquela peça e que pertenceria a uma qualquer engrenagem e que ele, (des)abençoado, herdou aquele conformismo, aquele assentimento, aquela reverência. Obrigado, avô, não sei se a peça existia, se era mera alegoria, nem conheço a quem serviu. Lá, por Vale de Cavalos, ninguém é de mau feitio mas também ninguém é de lamber botas. O meu avô era original, único, diferente, excepcional. Era uma peça fora do ralé. Tinha mau feitio e rogava pragas ao prior, tomava demandas ao feitor, e jamais baixava a cabeça. Também eu lhe herdei as manias, sempre soube que era e quero continuar a ser uma peça fora do ralé. Obrigado, avô.