Um dia de trabalho para a Nação, artigo do José António Barreiros, in A Revolta das Palavras
«Por mim acabarem com os feriados, os domingos, os dias de festa, é indiferente. De há muito que aboli a diferença entre os dias úteis e os inúteis, tornando cada um a possibilidade de ser útil. Mas isto sou eu que, sendo um trabalhador liberal, tenho vida de escravo. Mas há os que trabalham por conta de outrem, afinal a esmagadora maioria do País. E, segundo as estatísticas, dentro desses há muitos que na verdade não trabalham, outros que trabalham por todos os outros mais pelos seus subsídios sociais.
Ora é em função desses que os Governos costumam governar. Este não, porque governa em função do que manda a "troika", correndo o risco de desagradar no imediato na ténue esperança de vir a agradar a longo prazo.
Do ponto de vista político, seja da política que na democracia partidária se vive, que é o fazer tudo o que traga a maioria contente para o partido que governa se renovar no poder ou, ao menos, se renovarem no poder os interesses que aquele partido e o seu meio-irmão representam no bloco central do sempre nós, a esperança tem calendário: que a retoma chegue antes do fim da revolta generalizada e , em qualquer caso, antes do fim da legislatura.
Vem isto a propósito de o primeiro-ministro ter anunciado que não ia haver tolerância de ponto no Carnaval e da gritaria que isso provocou. Berram uns porque não perceberam que isso já decorria do anunciado em matéria de fim de festas, berram outros porque pensavam que o corte nos feriados, suas tolerâncias, "pontes" e outras complacências, era, uma vez mais, a fingir, berram, enfim, os restantes porque acham que isto tudo é tão Carnaval como o Carnaval que se lhes amputou.
Uma coisa é certa: o Carnaval, na sua simbologia popular, é o tempo da descarga emocional, do gozo público e da chacota consentida, dos cabeçudos que são a cara de políticos, o tempo em que o comum cidadão afivela outra máscara que a quotidiana, tempo de malfeitorias que esvaziam os sentimentos contidos de raiva, o alho-porro, os esguichos na cara, os "traques" fétidos, o foguetório alucinante.
Terra gélida e chuvosa por essa altura, escasseia em Portugal a lúbrica nudez, falta-nos o ambíguo travestismo carnudo, rareiam as partes púdicas cobertas de luzentes estrelinhas o resto ao léu, são poucos os matulões emplumados, possantes e bamboleantes, como no Brasil meu Brasil brasileiro, terra de calor.
O nosso Carnaval costuma cheirar a gato-pingado. Este ano, por exigências da governação, vai ser doméstico, no lugar de trabalho, imagina-se com que rentabilidade e boa-disposição.
Auguro que o Silva chefe de secção vai levar no bolso uma mão-cheia de "confetis", o Sousa amanuense uma pistola de água tintada de vermelho para acertar nas rotundidades aparentes da Ifigénia da tesouraria, até descobrir, tarde de mais, que eram os postiços do Marques do arquivo, disfarçado sob loira cabeleira. Línguas de sogra, serpentinas darão a cor, garrafinhas de mau-cheio o odor. Longínquo, frio, o senhor director-geral reportará a Sexa, ministro a ampla adesão dos seus dependentes à nova política dos sem-festa. Este e todos os colegas do Governo comunicarão a Sexa, o primeiro-ministro para que Frau Merkel o saiba.
No meio de cinzas, o Rei Momo está morto e enterrado.
Cuidado, porém: foi assim que o actual PR começou o seu declínio. Aos Portugueses podem tirar-lhes tudo menos o direito constitucional à risota, a garantia fundamental da gargalhada.»