As máquinas totalitárias desprezam o ser humano.
Tinha pensado, depois de, no sábado, estar presente na manifestação no Largo Camões, “Lisboa por Sakineh – 100 cidades contra a barbárie”, em escrever um pouco sobre a história desta mulher, que bem podia ser sobre a história das mulheres, que bem podia ser, ainda, sobre a “culpa”, que bem podia ser, também, sobre o “adultério”, tudo na perspectiva da República Islâmica do Irão.
Fiquei ainda com mais vontade de vos escrever sobre ela depois de hoje se conhecerem os insultos da imprensa iraniana contra Carla Bruni, a esposa do presidente francês Nicolas Sarkozy - apresentada como uma "prostituta" por um jornal e pelo site governamental do Irão, que denunciou a 'imoralidade' de Carla Bruni por esta ter expressado o seu apoio à iraniana condenada à morte por apedrejamento sob acusação de adultério e assassinato.
O que está em causa, no caso de Sakineh, é um grito de solidariedade e de coragem contra o regime da lapidação (a morte à pedrada, lançando pedras de tamanho certo para que a morte seja lenta e atroz, para que a mulher enterrada até ao pescoço possa sobreviver a dezenas de golpes) a pretexto de se fazer “a vontade de deus”. O que os juízes iranianos assumem é que têm um papel de intermediários divinos, com procuração daquele que entendem como seu deus, para torturar, ferir e matar. Obviamente que não existe nenhuma religião que entenda deus como uma entidade tão sanguinária, a violência está no coração dos homens que usam e abusam de conceitos religiosos para impor a atrocidade dos seus fundamentalismos, a pretexto da ordem e do bem comum.
O presidente francês ficou ofendido. Como ofendidos ficaram os 950 ciganos que, até Agosto, recambiou para a Roménia. A pretexto da ordem e do bem comum.
Assim começou Hitler a sua epopeia genocídia contra ciganos, judeus, intelectuais, revolucionários e maçons. A pretexto da ordem e do bem comum.
Os fundamentalismos são anti-natura e qualquer ser divino que ame os seus filhos abominará e sancionará – in extremis, aquando do julgamento final – tais actos.
Mas, para já, todos devemos tirar uma lição da História, incluindo Sarkozy, que vê os ciganos como a classe responsável por todos os males que afectam a sociedade francesa: olhar o uno pelo todo apresenta o maior dos riscos: o de vitimizar, o de ferir, o de agredir.
Um homem deve ser respeitado pelo que é, as generalizações conduzem inevitavelmente a juízos injustos e perigosos. Hoje são os ciganos - como antes foram os judeus -, os negros, os emigrantes, os homossexuais, os dissidentes e prisioneiros políticos, os que “pecam”, amanhã, por outra causa qualquer somos nós, os nossos filhos, pais, irmãos, amigos e vizinhos. É por isso que Sakineh nos diz assim tanto.
Claro que estamos contra a República Islâmica do Irão, como estamos contra Sarkozy, mas se sente assim tão atingido pela ofensa à mulher talvez seja bom olhar para o umbigo e perceber que o “erro” de ambos é exactamente o mesmo: apontar para um comportamento individual e generalizá-lo por classes, tipos, géneros ou outro. Todos os ciganos são ladrões para Sarkozy, como todas as mulheres solidárias com Sakineh cometem “pecados” e são prostitutas para o Irão.
Ambas as atitudes são totalitárias, apenas escolheram alvos diferentes.