sábado, 14 de julho de 2012

Cidadania e Maçonaria - a propósito das palavras de António Arnault

"O homem é um animal essencialmente político", disse Sócrates. Os tempos que atravessamos exigem de todos os cidadãos uma intervenção activa e esclarecedora, já que a imagem da Nossa Augusta Ordem, que aspira a ser composta por homens "justos e perfeitos" vêm sendo posta em causa. Tal como a romã vê os seus gomos vermelhos e sadios invadidos por um entremeio branco que adultera o mel do gomo conferindo-lhe o indesejável fel. Tal como o jóio vitupera o trigo - " O Reino dos Céus, disse o Cristo, é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo. Mas, enquanto os servos dormiam, veio um inimigo dele, semeou joio no meio do trigo e retirou-se. Quando a erva cresceu e deu fruto, então apareceu também o joio. Chegando os servos ao dono do campo, disseram-lhe: - Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde, pois, vem o joio? E ele lhes disse: - Homem inimigo é que fez isso. Os servos continuaram: - Queres, então, que o arranquemos? Não, respondeu ele, para que não suceda que, tirando o joio, arranqueis com ele também o trigo. Deixai crescer ambos juntos até à ceifa; e no tempo da ceifa direi aos ceifeiros: -Ajuntai primeiro o joio e atai-o em feixes para o queimar; mas o trigo recolham no meu celeiro" (Mateus, 13:24-30) - As nossas Lojas foram avassaladas por alguns homens de má índole que derramam a desgraça, o escárnio e o maldizer sobre os homens de puro coração. Em tempos como este, o silêncio seria a posição mais cómoda, mas penso que é altura de atar o joio em feixes e atear-lhe fogo. Entendo, pois, que, em vez do acobertado silêncio impõe-se a cidadania. O melhor amigo e o mais chegado Ir.'. com quem convivi, numa relação de grande proximidade, era um ancião inglês, que já não havia grau maior a que pudesse aspirar, nem maiores reconhecimentos que lhe pudessem conferir, e foi ele que me explicou, com os vagares e a experiência de quem vai acima da Mestria, que sempre que um cidadão se omite do exercício dessa responsabilidade interventiva de cidadania, renuncia, também aos princípios a que se ajuramentou, a começar pelo da defesa da "Liberdade", e, dentro deste, a defesa da normalidade e da regularidade jurídica e institucional. Entre nós, já presenciei responsáveis por G.'.L.'. defenderem uma moderada (ou até nula) intervenção e outros uma activa intervenção. Não falo, evidentemente, de debater nem a partidarização nem a politização, falo numa actuação firme que pugne pela manutenção do Estado de Direito. Silenciarmo-nos ante a instalação de um status quo adverso aos interesses dos cidadãos, olhar para o lado e oferecer a inércia como a única resposta à destruição do Estado Social, é compactuar com a implementação de um tipo de regime que esteve na base de intervenções históricas dos movimentos maçónicos de outros tempos. Recuso-me a deixar que a história se repita e a fazer parte de um conluio iníquo que atenta contra todos os princípios  da Maçonaria. ("Primeiro levaram os judeus, Mas não falei, por não ser judeu. Depois, perseguiram os comunistas, Nada disse então, por não ser comunista, Em seguida, castigaram os sindicalistas Decidi não falar, porque não sou sindicalista. Mais tarde, foi a vez dos católicos, Também me calei, por ser protestante. Então, um dia, vieram buscar-me. Mas, por essa altura, já não restava nenhuma voz, Que, em meu nome, se fizesse ouvir." [Poema de Martin Niemoller]).  Calar a voz dos instruídos e dos que assumem a discussão dos assuntos de interesse público, seja em trabalho dentro ou fora de Lojas, é o sonho de todas as ditaduras. Nos tempos que correm, o silêncio não serve.  Não "nos" serve e não serve a sociedade melhor a que aspiramos. Os regimes não democráticos (e não lhes chamo "ditaduras" porque não nos faltam exemplos de supostas "democracias" em que a prepotência impera) instituem-se pelo "poder da força". A começar pala força das ideias. Pela aculturação dos cidadãos. Resta-nos combater essa "força institucionalizada" com o "poder das ideias". A Maçonaria foi e é escola de livres pensadores, homens a quem os interesses, sejam eles de que índole forem, não resgatam nem compram. Porque os Maçons não se vendem a valores profanos. Assiste-nos, pois, o dever de não renunciar aos princípios de "liberdade", de "democracia" e de "república", sob pena de renunciar à nossa própria cidadania, que, recorde-se, jurámos defender. Por isso, o Maçom está ligado umbilicalmente à ideia da livre cidadania. É-lhe intrínseco o papel de "homem do leme". Seja o leme das ideias, seja o leme da intervenção. Um homem bom é-o em todas as suas dimensões de vida. Só assim a sociedade compreenderá, e tendencialmente aceitará, esse bando de homens livres. E os respeitará. A liberdade democrática posta em evidência na nossa vida mais não é que o resultado do trabalho árduo feito a coberto da Loja, da escola aprendida e apreendida "entre colunas"! Esta intrépida defesa pelo ideal democrático, enquanto único regime tolerante de uma Maçonaria aberta, impõe-se como uma "virtude". Dizia-me ainda aquele Maçon, que, qualquer Ir.'., enquanto homem e cidadão, não pode ser um "ignorante político", nem um ser alheado, porque jurou ser um "homem livre". Hoje, ser-se um homem interventivo na sociedade é, também, ser livre e de bons costumes. Aquele que, que na sua atuação de cidadão (comunitária), propugna pelos ideais de liberdade (democracia plena), igualdade (justiça social) e fraternidade (realização coletiva) é verdadeiramente um maçon. E, como dizia esse bom e estimado Ir.'., sempre que um Maçon enjeite o exercício desses seus deveres, face ao que ajuramentou, comete um perjúrio. E com estas palavras suscito o pensamento de hoje: saibamos ser cidadãos porque foi isso também exactamente o que jurámos! Conheço os silêncios impostos, os estatutos de cidadania cerceados e as recomendações de inércia, por parte de algumas Lojas - assim como sei de outras que estão cada vez mais activas na defesa da Liberdade e da Democracia, pela acção dos Ir.'. na sua vida profana. Se estivesse sujeita a uma forma de estar que me fosse espiritualmente e, em consciência, adversa, estaria na disposição de, ao estar "acordada" para a Maçonaria "adormecer" para a vida? Sei que não. Aos cinquenta e um anos, passadas quase duas décadas sobre a minha iniciação, incrustou-se, em mim, esta vontade de ser melhor cidadã, agindo, não silenciando, ainda que isso fosse o comportamento "recomendável"! E isto, em Portugal, ainda parece ser muito desconfortável para alguns Ir.'. que, fazendo lembrar aqueles criticos que nada fazem mas que criticam tudo o que os outros fazem, preferem cruzar os braços ou mesmo deixá-los cair. E quando julgo chegado o momento de "acordar", sinto-me entristecida, a um canto, lembrando que, entre ordens de inacção que, caso me fossem dadas, me feririam a consciência, ainda prefiro o sono dos justos. -  "Fios d'ouro puxam por mim A soerguer-me na poeira - Cada um para o seu fim, Cada um para o seu norte... - Ai que saudade da morte... Quero dormir... ancorar... Arranquem-me esta grandeza! - P'ra que me sonha a beleza, Se a não posso transmigrar?... " (Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão').