O ÚLTIMO 1 DE NOVEMBRO?
Muita coisa vai mesmo mudar a pretexto da “crise”.
O Expresso traz um artigo interessante nesta matéria que este texto segue nalguns segmentos. O 1 de Novembro, Dia de Todos os Santos, é celebrado há mais de mil anos no mundo católico e é uma das datas com maior tradição no calendário cristão. Começou a ser celebrado como resposta a uma declaração do Papa Gregório III (731-741), na Basílica de São Pedro, quando exaltou e exortou os católicos a rezarem pelas relíquias e almas dos santos no além. "Para os apóstolos, para todos os santos, mártires e confessores e para todos os justos iluminados espalhados pelo mundo". Tragicamente, o dia 1 de Novembro foi também o dia do terramoto de 1755, e, assim nasceu a tradição do pão-por-Deus, levado a uso pelas crianças que se viram expostas a uma situação terrível de alimentos e que saíram à rua pedindo restos de broa e comida.
Nos últimos anos, tem ganho força uma celebração predominantemente anglo-saxónica, o "Halloween" que se celebra na noite de 31 de Outubro e que tem origens, pelo menos segundo a maioria dos historiadores, no festival "Samhain" que marca o fim das colheitas e nos agradecimentos aos entes espirituais, na expressão escocesa "All-Hallows-Even" (que significa, antes da noite dos santos).
A data está também associada ao Dia dos Finados, celebrado a 2 de Novembro e que recorda todos aqueles que, apesar de não terem atingido a "iluminação no além", a sua alma continua a ser acarinhada por todos os crentes católicos em comunhão. É uma data em que volto a Vale de Cavalos para visitar todos os meus ente queridos. Esta volta sistemática e presente fica ferida com a abolição deste feriado. Os lisboetas, aqueles que não têm terra – os da segunda geração em diante – aqueles que “nasceram” em vaso, como costumo dizer, mantém o laço com a terra dos pais e dos avós neste dia em que regressam ao colo sanguíneo e da infância para reviver tempos de férias e de apego às searas, aos tomatais, aos meloais. É um dia de sabores e de cheiros que nos reportam à memória dos afectos. Os enchidos, os doces, as sopas de couve com feijão, temperada com um naco de carne e de chouriço, o café acabado de fazer à lareira, o bolo de ovos saído do forno.
É aquele “sentir” a que Eça de Queiroz se refere em “A Cidade e as Serras”, quando Jacinto, chamado a Tormes para reconstruir o túmulo de seus ancestrais, empreende uma viagem que se reencontra consigo mesmo. Naqueles dias em que troca, satisfeito e feliz como nunca "um peixe delicioso e muito raro que se pesca na Dalmácia"., “um Porto de 1834, envelhecido nas adegas do avô Galião”, o consommé frio com trufas, o vinho branco, Chateau-Yquem, o "peixe famoso da Dalmácia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa!", o Barão de Pauillac, o champanhe, o ortolan (caça fina), pelo "jantarinho de Suas Incelências que não demorará um credo.", o vinho de Tormes "fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo"... enfim, aquele jantarzinho caseiro e frugal. “O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e minguava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada aquele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: - "É divino!" Mas nada o entusiasmava como um vinho de Tormes, caindo do alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio: Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável desta serras?”
E assim é em Vale de Cavalos. Não falo do que podia ter mudado, falo do que não mudou. E ali me sinto como o “… o meu novíssimo amigo, debruçado da janela, batia as palmas – como Catão para chamar os servos, na Roma simples. E gritava: - Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha! Pulei, imensamente divertido: - Oh Jacinto! E as águas carbonatadas? E as fosfatadas? E as esterilizadas? E as sódicas?... O meu Príncipe atirou os ombros com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente, que uma bela moça trazia num prato.”
Voltar “à terra” para recordar o pouco que de bom a vida me deu na infância, no colo dos meus avôs, das minhas tias, dos vizinhos amáveis, genuínos e gentis, na companhia das primas, ai! Voltar à terra nesse dia santo e reservado às memórias pode ter os dias contados.
Se é pela crise ou se é pela Troika, ou ainda se é pelo Governo, seja pelo que for, uma parte de nós lisboetas “de vaso” vai ficar “sem terra”, por menos um dia. E fico triste. Mais uma lágrima que cai pelo meu País!