Esta semana assistimos à proclamação de intenções - ou de reconhecimento e/ou de concordância com as intenções de outrém - de Otelo Saraiva de Carvalho, sobre o estado do Estado. Acabei de ler "Otelo, a autodestruição de uma referência", do Nuno Saraiva, publicado no DN.
A propósito, uns levantaram-se indignados, dizendo que o coronel veio incitar as Forças Armadas a um golpe - ou a uma golpada, muito mais à portuguesa e a condizer com o que a quase todos se insurge - que foram "ultrapassados os limites", que é provável, ou seria aconselhável, que pegassem nas armas - e creio que não tinha em mente aquela imagem do menino com a arma na mão de que brotava um cravo vermelho - que desfilassem fardadas pelas ruas, que o melhor era "fazerem uma operação militar e derrubarem o Governo". A indignação destes - que me parece não ser a "indignação" de outros - justificar-se-ía pela intenção de "subversão da democracia e do Estado de direito", vendo mesmo nas palavras de Otelo um apelo a um golpe para pôr os coronéis no poder. Julgaram ver nas declarações de Otelo um "inaceitável atentado à liberdade como um intolerável desrespeito pela Constituição da República Portuguesa."
E eu que acreditava que em Democracia se podia dizer "tudo". Afinal, gerações adiante, parece que começámos a perceber que existe uma "espécie" de democracia - com letra pequena, evidentemente - onde há coisas que não se podem dizer.
Sejam quais forem as intenções de Otelo, quantos militares ouvimos em surdina a afirmar "insurgimentos" semelhantes?
E, note-se, este foi um homem de Abril.
Que se sinta indignado pelo actual estado de coisas ... quem não se sente?
Que tenha legitimidade para o dizer? e outros que nada tiveram a ver com Abril não o dizem também?
Que tem este homem de "diferente"? Porque é que aquilo que sente e que diz lhe é especialmente imputável?
E respondem-me, precisamente por isso é que tem mais responsabilidade! Concordo, "especialmente por isso" é que tem o direito de lhe dizer o que vai na alma. Goste-se ou não!
O Fernando Alves, disse esta semana na TSF, e o Nuno Saraiva cita-o: "Otelo, pá, este ainda que pantanoso estado de coisas é uma democracia!".
Esta semana, ainda, o capitão de Abril, Vasco Lourenço, veio afirmar, em entrevista ao Sol, que a convulsão social é inevitável, porque as políticas estão a pôr «cidadãos contra cidadãos», e aquilo que pode ter dito diferentemente de Otelo foi que tinha esperança que os militares conseguissem «ter calma» e ser um «esteio no meio da perturbação». Isto é assim tão diferente do que disse Otelo? Entrelinhas ... não.
Mas mais atónita fico com as afirmações de Pinto Monteiro, o Procurador-Geral da República. Que afirma que a Procuradoria-Geral da República não vai abrir qualquer inquérito às declarações de Otelo Saraiva de Carvalho, "a não ser que factos posteriores o justifiquem". E que "factos posteriores" seriam esses? Uma revolução? Civil ou militar?! Sendo civil, não entendo a que propósito Otelo seria responsabilizado? A que título tal lhe seria imputável? Sendo militar, tão-pouco. A não ser que alguém acredite que Otelo tem algum ascendente especial sobre as Forças Armadas. O que acho muito difícil.
Fica mal a Pinto Monteiro "avisar" Otelo. Muito mais mal que fica a Otelo "indignar-se" ou a Vasco Lourenço "peocupar-se"!
Fica-lhe ainda pior reagir de imediato às declarações de Otelo. A não ser que reagisse igualmente às declarações de todos os "indignados" que apelam quase ao tal golpe de estado - de novo com letra pequena! E de todos os indignados com a sua não actuação naqueles casos de que nos lembramos todos os dias e que todos os dias saem do nosso bolso, em autêntico e descarado "saque". Se for a investigar todos os que apontamos o dedo à "eficiência" da PRG ... vai ser uma obra herculeana. Logo Pinto Monteiro que, ainda esta semana, nos punha tão descansados com o actual estado - sempre em letra pequena - do País - em letra grande, claro. Que há corrupção? Nem por isso, afirmou.
No cenário de crise nacional, Otelo pode ter falado demais, mas não foi o único. Pinto Monteiro também deveria ter falado menos. Até porque se tenciona mandar investigar todos os cidadãos que se "indignam" ... é bem capaz de, a talho de foice - e isto nada tem a ver com foice e martelo, ter de espiolhar meio País.
Dada a minha especialização em contratos públicos, deixo aqui um conselho ao PGR: comece a pensar em mandar fazer "n" ajustes directos de empreitadas de obras públicas, mais precisamente de estabelecimentos prisionais - e veja se os serviços são mais sábios e cautelosos do que têm sido nesta matéria. Mas faça-o nos termos do ajuste directo geral, porque para recorrer aos critérios materiais, designamente o da alínea c) do nº 1 do artigo 24º do Código dos Contratos Públicos, teria de invocar a urgência e a imprevisbilidade dos factos. E, ao que parece, estes começam a ser tudo, excepto imprevisíveis.