sábado, 30 de agosto de 2014

"Estado-Bucha e Estado-Estica" - Luis Nazaré, Jornal de Negócios


Estado-Bucha e Estado-Estica, por Luis Nazaré, Jornal de Negócios
«Quem abomina o Estado nunca será competente na gestão da sua máquina – no limite, tudo fará para a exterminar.» 

«1. A primeira condição para se ser um bom profissional, em qualquer ramo, é gostar-se do ofício. Quem não gosta de jogar à bola nunca dará um bom futebolista, quem não se delicia com os prazeres da mesa nunca fará vida de chef. Quem abomina o Estado nunca será competente na gestão da sua máquina – no limite, tudo fará para a exterminar. Os apelos ao actual Governo para que avance no domínio da reforma do Estado só obterão como resposta novos cortes nas prestações sociais e nos salários dos funcionários públicos. Não adianta exigir-se-lhe mais. 

Três anos bastaram para que o funcionamento da Administração Pública regredisse pelo menos uma década. Aos condicionamentos do programa de austeridade aliaram-se as tenazes burocráticas da Praça do Comércio, numa festa revivalista de controleirismo financeiro. Se lhes juntarmos um regime de contratação pública kafkiano, uma política de rebaixamento dos serviços e uma total inépcia reformadora da governação, encontraremos as razões para o desespero dos cidadãos e dos agentes económicos. 

Para trás, fica um rol de promessas caídas sem combate. A racionalização de organismos estatais, a eliminação de tecidos adiposos, a alienação programada de imóveis supérfluos e as economias na contratação de serviços externos são os exemplos mais gritantes. Sem surpresa, porque pouco ou nada se esperava, a desburocratização e a modernização administrativa foram varridas das preocupações governamentais. 

2. A reforma do Estado é uma tarefa árdua e instante. Sem um desígnio político e um programa de acção de médio-prazo, perseguido com abnegação e competência, a burocracia instalada e a inércia levarão sempre a melhor. Não se consegue transformar a máquina estatal num aparelho ao serviço dos cidadãos e das empresas através de cortes cegos, congelamento de aquisições, asfixia dos serviços, por mais que as circunstâncias orçamentais sejam difíceis. À parte as reduções salariais, a actual situação é a praia dos burocratas. 

Uma vez assumida a prioridade política e assentes as responsabilidades públicas, o desafio chama-se gestão. Primeiro, há que fazer o trabalho de casa – analisar com a profundidade certa as atribuições e as estruturas organizacionais, dissecar os processos administrativos e operacionais, definir objectivos e métricas. Segundo, reengenhar. Terceiro, partir para o combate, com uma estratégia selectivamente radical e progressiva. Pelo meio, agregar as competências e os recursos necessários para assegurar o processo de transformação. Entre estes, os humanos são o nó górdio. 

Décadas de administrativismo imobilista e de insuficiente rejuvenescimento dos quadros de pessoal transformaram muitos funcionários públicos, designadamente os seus dirigentes superiores e médios, em resistentes à mudança. Por outro lado, as sucessivas machadadas nas condições de trabalho das suas áreas especializadas conduziram à saída dos melhores e ao natural empobrecimento do leque de competências nobres – em particular, as económicas e as jurídicas. No actual contexto, é ilusório pensar que os recursos próprios da Administração Pública são bastantes para assegurar a condução ou o acompanhamento das matérias mais complexas e impactantes. Em quantidade e em qualidade, o Estado está magro de recursos humanos qualificados. 

3. No plano local, o cenário não é mais radioso do que na Administração central. Vítimas dos mesmos constrangimentos administrativos, as autarquias penam para se libertarem de atavismos internos e externos, num quadro de escassez de meios humanos qualificados e motivados. Para muitos, o caminho encontrado foi a criação das famigeradas empresas municipais como forma de agilizar a gestão (para alguns, sabemo-lo, o propósito foi bem menos virtuoso). Por pouco tempo, que o preconceito e a mão visível da Praça do Comércio lhes cortaram as pernas. 

É, assim, com curiosidade que vamos assistir (iremos?) à passagem da gestão dos transportes urbanos de Lisboa e Porto para mãos camarárias. Se uns consideram que o movimento, idêntico ao da maioria das cidades europeias, faz todo o sentido, outros (por vezes, os mesmos) enjeitam-no por considerarem as câmaras incapazes de uma gestão eficiente. Enquanto o pau vai e vem, sei de uns quantos privados que aguardam tranquilamente pelo seu dia.»