A humilhação da classe docente, por Isabel Rodrigues, DN Opinião
"Acordei indignada! Não, indignada não é a palavra mais adequada. Talvez, chocada, envergonhada, incrédula, sejam adjectivos mais representativos daquilo que senti numa manhã desta semana, quando, ainda na cama, lia as notícias sobre Portugal. E pergunta o leitor o porquê da minha indignação, se o que abunda no país são vozes de indignação! Passo a explicar. Estou fora do país há cerca de nove meses e como tal faço os possíveis por acompanhar de perto, ou pelo menos o mais perto que me é possível, a situação e assuntos do país. E acreditem que indignação é coisa que não tem faltado quando se trata de ver o que se passa em Portugal.
Mas esta semana foi a gota de água. Pelo menos para mim. Estando atentos e fazendo as contas, pode o leitor pensar que sou mais uma daquelas jovens que seguiu o conselho do nosso primeiro-ministro e emigrou.
Pois bem, não foi bem assim. Emigrei, é certo, até já tinha pensado em fazê-lo anteriormente, mas a realidade é que foi a paixão pelo ensino que me impediu de fazer as malas mais cedo e partir.
Foi preciso uma paixão maior, para me fazer mudar de ideias. As coisas do coração são assim. Já dizia o dito popular que o amor surge quando menos esperamos e leva-nos para onde nunca imaginámos.
E foi desta forma que uma professora de História, com 30 anos, com oito anos de tempo de serviço, veio parar a Oslo.
Agora que já me apresentei, posso explicar o porquê da minha indignação: o estado do ensino em Portugal. Mas sinceramente nem sei muito bem por onde começar.
Pelas políticas economicistas que no início dos últimos anos lectivos têm afastado milhares de docentes das escolas; dos financiamentos públicos às escolas privadas; do atabalhoamento com que o país é brindado todos os inícios de anos lectivos; da precariedade profissional da classe docente, do achincalhamento de que é alvo, da culpabilização dos professores pelos maus resultados dos alunos nos exames; da burocratização que o ensino se tornou, que quase impede o professor de fazer aquilo que realmente gosta e o realiza: ensinar?
Não fartaria pano para mangas, pois qualquer um destes assuntos daria muito que falar. Mas a minha última indignação é mesmo a prova de avaliação de competências que os docentes contratados terão de realizar a 18 de dezembro.
Manobra de encaixe financeiro para uns, humilhação da classe docente para outros. Para mim, uma vergonha nacional sem precedentes.
E atenção, não sou contra qualquer avaliação, desde que esta seja respeitadora e igualitária. Se um professor deve fazer uma prova das suas competências, terão, na minha opinião, todos os outros funcionários públicos de o fazer.
Não passa pela cabeça de ninguém impedir um médico, um enfermeiro, um advogado, um economista, um engenheiro, do exercício das suas funções, para as quais se qualificou, só porque não realiza uma prova de competências.
Parece-me que o Ministro da Educação se está a pôr em cheque quando ele próprio põe em causa a legitimidade e competência das próprias Universidades nesta matéria.
Os professores estudam quatro ou cinco anos para tirar uma licenciatura e mais um ano de estágio pedagógico, com aulas assistidas por orientadores e coordenadores científicos das universidades, e depois surge alguém com a brilhante ideia de dizer que afinal nada disto tem importância e que se têm de dar provas de competência anuais.
Retirar crédito ao cidadão comum, já o português está habituado, mas às Universidades digamos que não é assim tão frequente.
Mas voltemos um pouco atrás. Partindo do pressuposto que a dita prova se realiza a 18 de dezembro.
O que pretende o Ministério da Educação com esta prova? Supostamente melhorar a qualidade do ensino. Mas como melhora se só cerca de 20.000 professores (de cerca de 120.000) irão realizar a prova?
Conhecimentos científicos e pedagógicos não são algo que se avalie de ânimo leve. Gostava apenas que os teóricos da Educação, não falassem e opinassem de realidades que desconhecem com a leviandade com que frequentemente o fazem.
Ouvi-los-ei com gosto no dia em que, dentro de uma sala de aulas, um deles consiga ensinar um qualquer conteúdo programático a uma turma de 28 alunos desmotivados e com problemas sociais graves (de fome e violência, por exemplo).
Esperam os nossos governantes algum tipo de respeito quando colocam no mesmo texto legislativo, a prova dos professores, lado a lado, com as informações dos testes intermédios e exames nacionais? Estamos a falar do mesmo assunto? Os critérios serão os mesmos?
Esperam algum tipo de respeito, quando a um mês da realização da dita prova, ainda não apresentaram a matriz? O que se pretende com isto? Eu tenho uma resposta: humilhar socialmente a classe docente. Descredibilizá-la perante a opinião pública. Sem margem de manobra para se preparar, a maioria dos professores contratados vai-se espalhar ao comprido, numa prova que vai ser toda ela feita para esse efeito.
E a sociedade em geral, cansada e amargurada como sempre, irá tratar de enxovalhar e dizer "É assim mesmo. Andam lá e nem sabem o que andam a ensinar", esquecendo-se que é isso mesmo que a tutela quer.
E o que se pretende ao colocar professores do quadro a vigiar os seus congéneres precários? Fragmentar a classe. Nem quero imaginar o ambiente de Guerra Fria que se vive nas salas de professores, quando se sabe que "aquele", "aquele" e "aquela" vão/deverão estar do outro lado da barricada a vestir a pele do lobo.
Mesmo partilhando dos medos dos contratados, haverá sempre professores do quadro que, por medo e pressão, irão vigiar a prova.
E, já me esquecia, a cereja em cima do bolo: o professor contratado ainda vai ter de contar os trocos para ir fazer a prova: 20 euros cada prova, 20 euros se se quiser a revisão de prova e 15 euros por cada prova a mais que um professor queira fazer (desgraçados daqueles que possuem habilitações que lhes permitem concorrer a mais do que um grupo de recrutamento).
Parece-me que é dinheiro fácil. Muito fácil até. Vai começar com os professores contratados. Mais ano menos ano estender-se-á aos professores do quadro.
E, ou muito me engano, ou isto será estendido às restantes classes profissionais que trabalham no funcionalismo público, pois é, simultaneamente, dinheiro e despedimento fáceis.
Não se esqueça o leitor que as cobaias de qualquer experiência da tutela na Função Pública têm sido os professores.
Chorei, chorei de raiva e de indignação. Não por mim, que decidi no dia em que fiz as malas para sair do país, não voltar a sentir o que sentia todos os dias 1 de Setembro.
Chorei pelos meus colegas que respeito e a quem estão a destruir e adiar sonhos.
Pelos meus ex-alunos, inseridos num jogo em que mudaram as regras a meio do jogo. Pelas gerações mais novas, que não terão direito a uma Educação como eu e a minha geração tiveram: feita por pessoas com ideais e apaixonadas pelo seu trabalho.
Estão a destruir um sistema de ensino. Um pilar fundamental de qualquer sociedade. Tem as suas lacunas e aspectos negativos, mas sem dúvida um dos melhores.
Não é por acaso que há cada vez mais profissionais de recursos humanos estrangeiros a fazer feiras de emprego em Portugal, para ir buscar profissionais altamente qualificados a custo zero. Mas enfim, é tão bom para as elites governar um país sem massa crítica.
Chorei porque me senti impotente. Por norma sou optimista e costumo ver os aspectos positivos das coisas, mas neste caso a visão já está tão turva... Vejo uma classe docente cansada e desmotivada, sem forças para lutar.
Pior que isso, vejo uma sociedade cada vez mais virada para os seus próprios problemas, sem grandes razões para ser feliz, focada numa quase sobrevivência que facilmente resvala para a indiferença dos problemas dos "outros", que afinal também são tão "nossos"!
A luz ao fundo do túnel vai afunilando e, nesse momento, lembro-me do poema que imortalizou Martin Niemoller:
"Quando os nazis vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um social-democrata.
Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista.
Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu.
Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar."
E fico profundamente triste."