Maquiavel e o marketing político, por Luis Nazaré, Jornal de Negócios
«A actual maioria ousou contrariar as regras dos compêndios de gestão estratégica e conseguiu conquistar um invejável posicionamento de mercado. Em campanha, prometeu rigor e esperança. Entregou empobrecimento e desânimo. E o mercado aceita, sem especiais manifestações de desagrado.
Há, no marketing estratégico, um conceito de difícil gestão designado por posicionamento. Trata-se, em síntese, de construir na mente do consumidor uma imagem distintiva do produto que lhe pretendemos vender, capaz de estabelecer uma relação de fidelidade comercial assente na robustez e na estabilidade da oferta de valor. Na política, passa-se o mesmo – tudo se joga na relação entre as expectativas dos eleitores e o produto oferecido pela governação. Pois bem, a actual maioria ousou contrariar as regras dos compêndios de gestão estratégica e conseguiu conquistar um invejável posicionamento de mercado. Em campanha, prometeu rigor e esperança. Entregou empobrecimento e desânimo. E o mercado aceita, sem especiais manifestações de desagrado. Será o dealbar de uma nova teoria de marketing político, adaptada às idiossincrasias nacionais, ou estaremos perante um caso de estudo etéreo, que só um contexto internacional imprevisível consegue explicar?
Na verdade, os portugueses interiorizaram um cenário de desgraça, prestando pouca ou nenhuma atenção às promessas da classe política, cientes de que os bons tempos do consumo e do crédito fácil não regressariam tão cedo. O actual primeiro-ministro negou em campanha que tivesse a intenção de eliminar os subsídios de férias e de Natal? Que importa, se todos sabiam que a sua supressão era certa? Foi mesmo uma gaffe o desencontro verbal entre governantes quanto ao período de carência? Se foi, não produziu quaisquer consequências visíveis – o facto só mereceu destaque nos debates parlamentares e nos comentários rebuscados dos analistas políticos, que o povo já percebeu o filme todo.
É este o invulgar mérito da maioria governamental. Voluntária ou involuntariamente, soube preparar um ambiente de resignação e descrença perante um contexto económico reconhecidamente hostil, umas contas públicas debilitadas e uma Europa pífia. Ao completo arrepio das teses de Maquiavel, vai distribuindo as malvadezes aos bochechos, guardando as boas notícias para mais tarde, de um só fôlego, lá para 2015. Se as houver. Aqui reside o fulcro da questão política. Os portugueses parecem estar disponíveis para mais e mais sacrifícios, conformados com o destino e indiferentes perante um futuro de que nem querem ouvir falar, mas não perderam, como nenhum povo perde, a sua noção dos limites de utilidade. O posicionamento de marketing da actual maioria governamental comporta riscos sérios – os portugueses interiorizaram a austeridade e o empobrecimento, mas dificilmente se reverão num discurso esperançoso, que intuem como táctico e desconforme com a matriz de expectativas negativas que criaram. Entre outras, é esta a dificuldade principal do ministro da Economia.
Além de circunstâncias específicas ao personagem e da emergência da crise financeira mundial, foram exactamente as dissonâncias de posicionamento político que liquidaram Sócrates. Os portugueses viam-no como um dirigente ambicioso, capaz de encetar mudanças e induzir progresso. Enquanto essa percepção durou – com políticas agressivas no domínio da ciência, um élan reformista na Administração Pública, festa nas escolas, expansão das redes viárias e diplomacia económica activa – Sócrates viu a intelligentsia nacional a seus pés e o povo confiante. Quando chegou a crise e foi necessário arrepiar caminho, tudo mudou. O quadro de referência mental dos eleitores – e o da intelligentsia lusitana, esse especialmente volátil – não estava preparado para um discurso de dificuldades. Daí à descoberta de "falhas de carácter" e a desmandos das contas públicas foi um passo. O seguinte foi a lapidação.
Patriota que sou, espero bem que o jogo do posicionamento político reverta a favor do povo e que o FMI, no seu 3º relatório sobre Portugal, se engane ao augurar tempos negros para a nossa economia. Se, por alturas de 2015, se revelar certo, será muito interessante revisitarmos Maquiavel. Caso contrário, recomendo a leitura de um bom manual de marketing estratégico.»