segunda-feira, 19 de março de 2012

"Ser gente" - por Adão Cruz

adão cruz num artigo que recomendo sobre "SER GENTE"! (Aventar)
«Quando eu era criança, diziam-me os meus pais que eu tinha de fazer tudo para ser gente. Ser gente? Mas o que é ser gente?
Ao ver hoje o que se passa à nossa volta, ao ver a deterioração mental, a total ausência de escrúpulos, o desprezo da honra e da dignidade, a proliferação de criminosos, corruptos e vigaristas de toda a espécie, mais evidentes nos estratos superiores da sociedade e nos sectores da Administração e do empresariado, de onde deveria vir o exemplo e não o assalto miserável a quem trabalha, eu entendo o que os meus pais quereriam dizer, com o ser gente.
Ser gente seria, porventura, ir mais além do que trabalhar com seriedade e honestidade. Ser gente pressuporia a construção de alguma coisa dentro de nós e fora de nós que assenta, a meu ver, em quatro pilares fundamentais:
1 – O pensamento. O pensamento é o suporte mais poderoso e a armadura mais forte do homem, a mágica força da sua criatividade e da sua razão de ser. Sem pensamento o homem não pode ser gente, o homem não passa de um céu brumoso, sem ponta de sol. Por isso o pensamento tem tantos inimigos! São inimigas todas as inúmeras formas de anestesia mental, falsamente lúdicas, falsamente festivaleiras, falsamente religiosas, falsamente futebolísticas, levando a sociedade à ignorância, através de uma espécie de coma vigil que a impede de raciocinar. É inimigo o vazadouro de lixo mental da televisão, com que a sociedade vai enchendo a disquete da sua metacultura. Inimiga a perversão mediática da política, que deveria ser a nobre arte de uma verdadeira democracia participativa, inimiga a política pornografada em degradantes guerras de interesses que escamoteiam os verdadeiros problemas nacionais, inimiga a política atafulhada no maior lamaçal de corrupção de sempre.
2 – O segundo pilar do alto edifício que é ser gente decorre do primeiro e chama-se cultura. Não se trata da cultura do enciclopedismo balofo, somatório de vagos conhecimentos, empilhamento de ideias improdutivas, a cultura-cassete dos tempos de hoje, a cultura-espectáculo, mas sim a cultura do dia-a-dia, a cultura autêntica da dignidade da vida, a cultura irrepreensível do percurso.
3 – O respeito pelos outros constitui o terceiro pilar. Simplesmente, não há respeito pelos outros se não houver respeito por nós próprios. Quem não se respeita a si mesmo não pode respeitar os outros. E quem tem respeito por si próprio não pode ser falso, corrupto, ladrão, indigno, especulador, manipulador de pessoas e ideias, criminoso, traficante e sabujo. O respeito dos outros é o espelho de nós próprios.
4 – O quarto pilar desta edificação é a solidariedade, a solidariedade no seu sentido global, já que a solidariedade pontual, ainda que louvável, não conduz a nada em termos sociais. É o caso da caridade, que não sendo de forma alguma negativa, pode ter, ao contrário do que acontece com a justiça, efeitos nefastos quando pregada como fim em si mesma. O primeiro passo da solidariedade está no entender da indispensabilidade da justiça social e no seu consciente reconhecimento como prioridade das prioridades, a todos os níveis. O segundo passo reside, por parte do cidadão, no cumprimento correcto da lei, no cumprimento escrupuloso e competente dos seus deveres de cidadania, no mais correcto exercício da sua profissão e da missão de que cada um está incumbido. Viver dos outros, implica viver para os outros.
É triste reconhecermos que uma parte dos homens de hoje, dos homens que mandam, dos homens que podem, dos homens que estão à frente de governos e de instituições de alta responsabilidade não são gente, nunca foram gente nem para lá caminham. São verdadeiros exemplares da mediocridade e da ausência de formação e de escrúpulos, a ocupar grandes e rendosos postos, arremedos de gente, excrescências malignas da sociedade, contrafacções da honra e da dignidade, são a parte podre da humanidade. A epidemia de corruptos é disso exemplo, e o que conhecemos é a ponta do iceberg.
A esses, os que se apresentam como cabotinos deste palco da vida, para os que não reconhecem a sua inutilidade e dilatam dia a dia a sua perversidade, e pensam que a roubar é que são grandes e que a viver à grande e à francesa à custa da miséria e do trabalho dos outros é que estão acima do mundo e do homem comum, eu lembro que no seu estômago já não cabe mais nada e nos seus cofres o dinheiro já não passa de entulho. Ainda bem que existe a morte, o único mecanismo democrático da vida.»