o alvaro, o tratado de tordesilhas do ano da desgraça de 2012 e a alvarice do 'debate', por fernanda câncio (Jugular)
«estive a ouvir - até certa altura, quando desisti por manifestamente não aguentar mais idiotice - o fórum da tsf sobre o corte de feriados superiormente decidido pelo álvaro (inesquecíveis para todo o sempre aquelas palavras - 'não podiamos tirar o 25 de abril e o 1º de maio, o 10 de junho é o dia de portugal, sobravam o 5 de outubro e o 1º de dezembro') e não queria crer que a ninguém ocorresse dizer o mais óbvio dos ululantes óbvios: toda esta conversa de 'tinhamos de cortar 2 feriados civis porque a igreja concordou em cortar 2 religiosos' é simplesmente absurda.
admitindo que é um imperativo nacional cortar 4 feriados -- o governo tem legitimidade para tomar esse tipo de decisões, por estúpidas e infundamentadas que nos surjam --, fazendo as contas constatamos que nos 13 feriados ditos nacionais estabelecidos na lei 8 são de cariz católico. mais de 60% dos feriados impostos pelo estado são portanto referentes a celebrações de uma religião -- e uma apenas.
isto começa logo por ser um problema constitucional, em virtude da separação entre estado e religião, e prossegue sendo-o à luz da lei de liberdade religiosa. óptima oportunidade pois a que se oferece para endireitar esses erros clamorosos e contra-natura. porém, como é sabido, o governo não o fez -- invocando a concordata e o facto alegado de que ela obriga o estado português a entender-se com a igreja católica (entendida aqui como a hierarquia da dita e o seu quartel-general, o vaticano) nesta matéria.
sucede que isso é rotundamente falso. e não acreditem em mim, vão ler a concordata. e já agora oiçam também sobre isso o suponho que insuspeito cardeal patriarca.
temos pois que o que se passou com este dividir dos cortes de feriados 'ao meio' foi que o governo português decidiu entregar à igreja católica - ou seja, se quisermos, a um 'poder estrangeiro' -, a decisão sobre uma matéria que só ao estado português diz respeito e em relação à qual não se constituiu jamais em qualquer obrigação. e isto só se pode interpretar como deliberação de, por um lado, erodir a memória colectiva e abalar a identidade histórica nacional num fervor saloio de pseudo-liberalismo e de 'nós podemos tudo' (chama-se a isto fazer tábua rasa) e por outro 'comprar' a benevolência dos bispos, curvando-se perante uma religião e afirmando que a simbologia clerical lhe é mais cara que a nacional. uma mistura de oportunismo parvenu e beatice interesseira. é bonito. mas mais bonito ainda é a forma como o país dos comentadores e dos jornalistas engoliu isto tudo sem dificuldade, repetindo à saciedade 'feriados civis e religiosos', como se essa distinção tivesse o menor sentido; como se não houvesse apenas feriados nacionais e não se tratasse, ao reduzi-los, de ter em consideração a dignidade nacional e o cumprimento da constituição -- mas, claro, a constituição já não vale nada, não é?»