Foi hoje amplamente divulgado pelos órgãos de comnicação social a notícia de que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou a Irlanda, na sequência de uma decisão que impediu o aborto de uma mulher com cancro, que receava que a gravidez provocasse uma recidiva. Os juízes de Estrasburgo entenderam que o estado irlandês violou o direito à vida privada e familiar da lituana que residia no país, ao negar-lhe o direito ao aborto, apesar dos receios por ela manifestados de que a gestação provocasse uma recidiva da doença. Fixaram uma indemnização de 15 mil euros por danos morais. Mas o que é mais determinante é que o Tribunal dos Direitos do Homem concluiu que nem as condições médicas nem as jurídicas existentes na Irlanda permitem à mulher "estabelecer a existência" do direito a abortar, confirmando o que o Estado alegara: a manifesta "incapacidade para implementar o direito constitucional a um aborto legal", pelo que os juízes consideraram ainda que os tribunais não são competentes para decidir se uma mulher está, ou não, em condições de ter direito a um aborto legal.
Sabe-se que a legislação da Irlanda é muito restritiva no que diz respeito ao aborto e que apenas o autoriza em situações limite, como o risco de morte da mulher. Pior, e mais fundamentalista: o aborto é punível com prisão perpétua.
Por outro lado, o Tribunal Europeu indeferiu os requerimentos de duas outras mulheres que pretendiam abortar por motivos pessoais. A decisão sobre a cidadã lituana foi tomada no âmbito do caso ABC vs Irlanda, apresentado por três mulheres, que alegaram que as restrições ao aborto as estigmatizaram e humilharam, além de terem posto em risco a sua saúde. Mas o tribunal europeu não considerou que nas outras duas situações tivesse havido violação dos direitos à luz da legislação nacional. Um dos casos dizia respeito a uma mãe solteira com uma criança a cargo, que receava o perigo de uma gravidez ectópica. O outro era o de uma ex-alcoólica, que perdera a tutela dos quatro filhos que já tinha e não queria, com uma nova gravidez, comprometer os esforços para reunificar a família. As três acabaram por abortar no Reino Unido.
Apesar de o aborto ser crime na Irlanda, milhares e irlandesas, por ano, recorrem ao estratagema de abortarem noutro país. O que fizeram estas três mulheres.
Continua a deixar-me petrificada que uma questão que encerra em si mesmo um direito humano e que subintegra vários direitos humanos, sirva de mote eleitoralista. Mas assim é.
“Aborto, tema eleitoral após decisão do tribunal”, é a manchete do Irish Times, a seguir ao julgamento de 16 de dezembro, no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), no qual o Estado irlandês não conseguiu aplicar a lei em vigor à despenalização do aborto. Segundo a Constituição irlandesa, o feto tem direito à vida tal como a mãe, sendo o aborto um recurso apenas nos casos em que a vida da mulher se encontra em risco. O diário de Dublin refere que, de acordo com o Tribunal, “o Estado violou os direitos de uma mulher com cancro, incapaz de decidir se poderia fazer um aborto legal na sua situação”. A questão altamente polémica do aborto, numa sociedade predominantemente católica como a da República da Irlanda, “regressou para ensombrar os partidos políticos na véspera da campanha eleitoral de 2011”, observa o editorial do Irish Times, criticando a “cobardia política” dos sucessivos governos, relutantes em propor uma legislação clara sobre a matéria.
Em época eleitoral, a Irlanda admite alterar a legislação sobre o aborto. "Obviamente devemos legislar, não há dúvida sobre isso", disse a ministra da Saúde, citada pela AFP, num comentário à decisão do tribunal. Não foram, no entanto, avançados prazos nem contornos das mudanças. Legislar "leva tempo", referiu Mary Harney, que aludiu ao "carácter delicado e complexo" do assunto, num país fortemente católico.
A Human Rights Watch veio já considerar a decisão de ontem uma chamada de atenção ao Governo de Dublin. "Na Irlanda, mesmo as mulheres cuja gravidez põe a vida em risco, como era o caso, não podem ter acesso ao aborto", disse Marianne Mollmann, directora da organização. "Não é apenas trágico, é uma violação dos direitos humanos. E deve acabar."
Não podia concordar: deve acabar. Ou melhor, devia ter acabado já, há muito.