O artigo é de João Lemos Esteves, no Expresso, hoje. Vai transcrito na íntegra.
"1.Cavaco Silva promulgou a lei que altera as regras do financiamento do Estado ao ensino privado e cooperativo. Após ter aberto a porta ao veto político do diploma há cerca de uma semana. Justificação: o Governo e a presidência da república estabeleceram nos últimos dias contactos que resultaram numa melhoria significativa da solução legislativa, com a consagração do princípio da estabilidade contratual e um regime de transição razoável. Ressalva, ainda, o comunicado da presidência da República que o PR não se imiscuiu na competência política exclusiva do governo e as suas reservas iniciais sobre o diploma foram sanadas.
2. Segundo o que consegui apurar, o diploma promulgado ontem corresponde, no essencial, à versão inicial proposta pelo Governo. As alterações alegadas pela Presidência da República foram mínimas. E como não conhecemos na íntegra as (potenciais) duas versões do diploma, não podemos fazer um juízo de valor sobre o mérito dessa figura inusitada da prática constitucional que são as " conversações governo - PR" sobre soluções legislativas, tão querida a Cavaco Silva. Podemos, porém, analisar o comportamento do atual (e mais que provável futuro) Presidente da República. Sejamos claros: Cavaco não fica nada bem na fotografia ao promulgar o diploma. Porquê? Vejamos.
2.1. Em primeiro lugar, Cavaco confirma que faz uma interpretação ultra-limitativa dos poderes presidenciais. Ora, o PR manifestou reservas quanto ao conteúdo do diploma que altera o financiamento das escolas privadas e cooperativas há uma semana. O espírito da solução legislativa é o mesmo - por muito que se diga que falou com o Governo e chegou a uma solução conjunta razoável. Então, decide promulgar? Sem manifestar nenhuma discordância? E o comunicado é manifestamente insuficiente - quando se diz que uma certa solução legislativa é má e, volvida uma semana, afinal, chega-se à conclusão que garante a estabilidade contratual, deve-se elencar os argumentos que sustentam tal mudança. Explicar porque razão as reservas do PR desapareceram ou não tinham razão de ser. Já sabíamos que Cavaco não tem qualquer problema em promulgar diplomas com os quais discorda profunda e completamente, alegando a crise económica e social (mesmo quando versam sobre valores e questões sociais, como no caso dos casamento entre pessoas do mesmo sexo). Já sabemos que Cavaco promulga diplomas, discordando frontalmente do seu mérito e temendo as suas consequências (vide a lei do financiamento partidário). Ficamos agora a saber que Cavaco promulga diplomas, só porque o Governo o contatou antes. Dá a ideia que Cavaco encara as funções presidenciais como se fossem as de um polícia sinaleiro excessivamente simpático: dá indicações sempre com grande vigor, mas fecha sempre os olhos às infrações. E com isto perde-se a autoridade. E ainda se queixa Cavaco de nunca ser ouvido! Pudera! Porquê? No final, o resultado é sempre o mesmo: promulgação, com mais ou menos reservas.
2.2. A referência ao respeito pela competência exclusiva do Governo no comunicado da presidência da República não é inocente. Deduzo daqui que Cavaco acha - e experiências anteriores demonstram-no - que a utilização do veto político se traduz numa ingerência nos poderes governamentais. E porquê? Porque o veto político significa que o PR utiliza argumentos de mérito, faz um juízo sobre a oportunidade política do diploma, impedindo que uma opção do governo se concretize. Este argumento é perigosíssimo e faz-me temer que Cavaco reduza o órgão de soberania Presidente da República à mais pura inutilidade. Porque o veto é o único verdadeiro poder que a Constituição reserva ao presidente. Se Cavaco começa a abdicar dele permanentemente, o que resta? Mais: o único veto que vale a pena - no sentido de ter mais força - é aquele que incide sobre diplomas do Governo. Explico: o veto do PR a diplomas governamentais é absoluto - isto é, não é possível o governo ultrapassá-lo, fica, desde logo, inviabilizado. Morre com o veto do PR (o governo apenas poderá reagir, elaborando uma proposta de lei para apresentar ao parlamento). Ora, se o PR tinha reservas quanto às alterações à lei em causa, vindo esta do governo, porque não utilizar o veto político que levaria o Governo ou a alterar o diploma ou a levá-lo ao parlamento para apreciação dos vários partidos? É que a história das conversas prévias é muito engraçada...Mas estas fogem ao controlo democrático e à transparência democrática. E permitem sempre versões contraditórias.
3. Qual a explicação política para a decisão de Cavaco? Não quis criar um conflito com o governo - PS e com a esquerda em geral - esperando cativar eleitorado de esquerda, sobretudo, de centro oscilante. É uma opção e uma lição para PSD e CDS: reparem que estes partidos discordam da lei e ficaram caladinhos agora com a promulgação - porque apoiam o recandidato Cavaco Silva e não lhe querem tirar o tapete. Cavaco acaba de dar o sinal: não atribui a mínima importância à agenda política da direita e aqueles que pensam que forçará a queda do governo para júbilo dos sociais-democratas estão muito, muito enganados. Assim, a promulgação das alterações ao financiamento do ensino não público é uma bofetada monumental na cara de PSD e CDS. Habituem-se (se é que já não se habituaram...).
P.S - Parece que, em Portugal, ninguém conhece os poderes do PR. Pelo menos, dão a entender tal desconhecimento. Agora, foi Hermínio Loureiro, em Oliveira de Azeméis ,que apelidou Cavaco de "homem do leme". Que eu saiba o homem do leme é o que comanda - e, no sistema político português, quem comanda é o Governo. As hostes do PSD estão muito excitadas com a vitória de Cavaco...há que acalmar. E Cavaco não deve rejeitar explicações sobre BPN - vai ter de lidar com ele no debate com Manuel Alegre."