segunda-feira, 31 de março de 2014

"Avé, Teodora!" - Uma carta à ideia atroz do imposto sobre as contas bancárias

"Os que vão ser esmifrados te saúdam! E mais te agradecem por os teres ajudado a ver o túnel ao fim da luz, a compreender a sua imensa irrelevância perante o infinitamente misericordioso e omnipotente Estado! Atiraste-nos à cara com o ovo de Colombo: obrigatoriamente, os ordenados dos cidadãos portugueses serão depositados nos bancos em contas-poupança e, por cada levantamento que fizerem, terão de pagar um imposto ao Estado.
Claro que já todos sabíamos que aquilo que recebemos em troca do nosso trabalho pertence ao Estado. E à banca, naturalmente. Mas só tu, ó Teodora, foste capaz de sugerir publicamente que o Estado continue a deixar-nos utilizar esse dinheiro que Lhe pertence. E só a troco de uma pequena remuneração, taxa ou imposto, suavemente cobrada de cada vez que tivermos um impulso despesista. Custa a acreditar em tanta generosidade. São verdadeiros arrepios de prazer que sentimos ao imaginar este futuro radioso que nos auguras.
E estamos todos certos que esta tua ideia, que, modestamente, classificaste como interessante e que, com inteira justiça, consideramos como genial, vai ser lembrada pelos vindouros como o começo de uma era de felicidade e de paz entre os povos.
Ave, ó Teodora, porque nos fizeste ver, a nós que andávamos absurdamente preocupados com o crescimento descontrolado do Estado e a sua sistemática invasão da nossa privacidade, que, afinal, nós é que nos estávamos a pôr em bicos dos pés, nós é que estávamos a ser arrogantes, cegos e mesmo, porque não dizê-lo, estúpidos.
Nós que, por exemplo, ao lermos as notícias sobre a actuação da NSA e os programas de vigilância electrónica utilizados pelos EUA para espiarem a população norte-americana e de todo o mundo, pensámos que o Estado, na sua luta contra o terrorismo, estava francamente a exagerar, temos de reconhecer humildemente, agora e graças a ti, que quem estava a exagerar éramos nós.
Nós, que seríamos capazes de censurar com veemência os tribunais egípcios por condenarem à morte 529 muçulmanos por terem participado em manifestações das quais resultou um polícia morto, compreendemos, agora e graças a ti, que estaríamos a errar e que, por cada polícia, por cada representante de um Estado que morre, o extermínio de mil cidadãos não é suficiente.
Porque a Verdade, e só tu, ó Teodora, a revelaste, é esta: no princípio, era o Estado. E só depois, não ao sétimo dia mas ao fim do mês, o Estado segregou os cidadãos, um a um, para O servirem e para O glorificarem até ao fim dos tempos.
Nós, que não somos mais do que míseros grãos de areia perante a imensidade do Estado, tivemos, até segunda-feira passada, a estultícia de considerarmos que as nossas vidas eram nossas e que o nosso dinheiro era nosso. Não são e não é. Como é meridianamente claro, tudo vem do Estado e tudo vai para o Estado!
Nós – só agora o entendemos – mais não somos do que precários utilizadores dos bens do Estado. E isso conforta-nos, sendo mesmo um verdadeiro agasalho para os espíritos perturbados e iludidos que fomos até terça-feira passada. A nossa gratidão ao Estado por, segundo as tuas sábias palavras, só nos vir a cobrar uma parcela dessa imensa riqueza que nos cede mensalmente – mais a uns do que a outros, é certo –, é incomensurável, sem dúvida.
Mas uma dúvida nos atravessa a mente e a tua ajuda pedimos, ó Teodora.
Como fazer com aqueles a quem o Estado cedeu o dinheiro e se viram obrigados a colocá-lo em offshores? Como proceder com aqueles que guardam o dinheiro do Estado nos seus colchões e enxergas? Como proceder com aqueles que a sua vida é "chapa ganha, chapa gasta"? Ou, ainda, como assegurar que os arrumadores de carros ou os meros pedintes controlam as suas despesas quando utilizam o dinheiro – muito ou pouco, tanto faz – que ao Estado pertence? E será que os 25% dos cidadãos portugueses que, segundo as estatísticas, estão em risco de pobreza serão sensíveis à necessidade de combater o despesismo?
Estas dúvidas, que rapidamente se podem tornar em angústias e mesmo em crises de fé, exigem respostas urgentes. Tenho, contudo, a certeza que, se não tu, ó Teodora, qualquer outro dos sacerdotes que decerto te acompanham, sejam eles ex-ministros das Finanças, jornalistas económicos ou governantes encartados, no dará as respostas certas e exactas que nos farão descansar de novo. Porque, agora que já vimos o túnel, não mais queremos ser abandonados num mundo de incertezas e de interrogações. Na verdade, desde terça-feira passada, tudo se tornou tão claro e luminoso que se nos torna insuportável a sombra sequer da dúvida.
Porque, agora sim, percebemos que, quando o Estado gasta em submarinos ou em estádios de futebol, mais não está do que a gastar o que é Seu. Mais não está do que a fazer o que Lhe cabe. E a nós, o que nos cabe é pagar, devolver-Lhe o que Lhe pertence, para que possa viver em paz e sem défices.
Obrigado, ó Teodora!" - Francisco Teixeira da Mota, Advogado | Público | 28-03-2014

domingo, 23 de março de 2014

Aux voix citoyens! Expressai-vos! A revolução somos Nós! A revolução está aqui!

A “democracia”, já o disse Nietzsche, é um berço de tiranos. Tiranos que os cidadãos democraticamente elegem. Lutar pelos direitos. Numa Justiça viciada de prescrições e de expedientes dilatórios. Morta para quem a paga e viva para quem dela carece. A lei, nas mãos dos tiranos, é, por excelência, uma prerrogativa de controle, uma manobra de domínio político, uma engrenagem feita pelo sistema e para o sistema, encimada pelas mesmas lutas, manifestações "irrevogáveis" voluntariamente desfeitas às mãos dos que detém o poder. E. volto a dizê-lo, porque foram eleitos, democraticamente eleitos. A Justiça, tal como o Direito, dependem, assim, da interpretação e da manipulação, e, ainda mais, da mens legis. Quem A/O faz? O direito de lutar já não pode ser o direito de permanecer em silêncio, mas o de ter Voz. O Verbo impõe-se ao Silêncio, sob pena de ser a própria Voz a morrer. A luta é a Voz da insatisfação.O Direito não pode ser o "direito" garantido pelo sistema, mas o direito natural ao protesto e à indignação. A Voz é a da escolha e do livre-arbítrio. O Estado não "contrata" mais com os cidadãos, porque violou a bilateralidade dos acordos firmados, "actua" unilateralmente, sem auditar, sem peso nem medida. Eis-nos actores de uma equação à George Orwell, feitos bichos. A Política não se "serve" do Direito, mas estrangula-os. E quando o Direito se expressa é já a luta sob a forma de saída do caos. O País exige uma transformação: a expressão manifesta-se pelos cantos, sai por todos os poros. Assim o dizia Rousseau, a força fez os primeiros escravos e foi a sua covardia que os perpetuou. Portugal, É a Hora. Acima das políticas de paleio e de algibeira está a política do ser humano. A sociedade poderá não ser transformada pela revolução social, mas sê-lo-à pela revolução humana. E onde estão os verdadeiros soldados do Templo? E onde estão os verdadeiros construtores do Templo? Dentro do coração de cada um, ainda que num aparentemente escondido recanto da nossa alma. Aux voix citoyens! Expressai-vos! A revolução somos Nós! A revolução está aqui! AM

segunda-feira, 17 de março de 2014

A Política faz-se na sala. A politiquice faz-se no quarto. Entre ambas tem de haver uma cortina.


Estou siderada pela negativa com a reacção ao chumbo da co-adopção no Parlamento pelo militante do PSD, Carlos Reis [foi vice-presidente e director do gabinete de estudos do PSD e presidente da distrital de Lisboa do partido], que apontou críticas à “hipocrisia” do CDS e à presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves. Não estou constrangida porque fez críticas mas sim pelos teor destas. “O CDS mete-me nojo e causa-me escândalo moral. A hipocrisia de um Partido Político que é liderado por um homossexual mas que vota a favor da continuidade da discriminação de famílias e da orfandade forçada de crianças ultrapassa a minha capacidade de verbalização”, escreveu Carlos Reis no facebook. E criticando a segunda figura do Estado Português. “Também me causa repulsa o papel ignóbil da Presidente Assunção Esteves: uma lésbica não poderia hoje recusar-se a participar naquela votação”. E estou siderada porque quer Paulo Portas quer Assunção Esteves nunca manifestaram em público a sua orientação sexual e não me apraz ver armas de arremesso com comportamentos que pertencem à vida privada de cada um até que cada um as torne públicas e as assuma. Só me pronuncio, e ainda assim sem fazer juízos de valor, sobre factos e actos provados. Ocorre que nunca estive na cama nem como Portas nem com Assunção pelo que desconheço os seus gostos na dita. Igualmente, não sou mosca, pelo que nada vi nem ouvi. “Mostraram serem mulheres sem coluna vertebral e sem consciência”, conclui Carlos Reis. Não gosto desta atitude. São figuras publicas e respeito-os como pessoas. E respeitá-los-ia igualmente se conhecesse tais "preferências". Carlos Reis é jurista e foi o autor do artigo “Carta aberta ao presidente da JSD e seus compagnons de route”, publicado no Público, onde condenava a posição da juventude do PSD sobre a proposta da realização do referendo à adopção e à co-adopção e que teve grande repercussão dentro do partido. Fê-lo no seu direito. A Política é um assunto de sala. A politiquice é um assunto de quarto. Quem se quer manter na sala com todos não espreite entre as cortinas do quarto de cada um. Não claudico em matérias deste teor. Já me custou demasiado na vida esta minha teimosia, mas não abdico dela. Afasto cortinas da sala mas preservo as do quarto. - aqui fica o comentário na íntegra do Carlos Reis no face. "Sobre a votação de hoje: o CDS mete-me nojo e causa-me escândalo moral. A hipocrisia de um Partido Político que é liderado por um homossexual mas que vota a favor da continuidade da discriminação de famílias e da orfandade forçada de crianças ultrapassa a minha capacidade de verbalização. Mas também me causa repulsa o papel ignóbil da Presidente Assunção Esteves: uma lésbica não poderia hoje recusar-se a participar naquela votação. Causa-me estupefacção que 2 Deputadas do PSD tenham alterado o seu sentido de voto: mostraram serem mulheres sem coluna vertebral e sem consciência. E lamento por hoje 6 Deputados terem faltado: nós pagamos-lhe salário para eles votarem (e isto vale para o Deputado do PCP e para os 3 do PS que não puseram os pés no Parlamento). Mas uma coisa é certa: foi renhida. Registo no entanto aqui que se todos os Deputados da pseudo-esquerda tivessem comparecido hoje a votação teria sido histórica. E que apesar de tudo, no PSD ainda há homens e mulheres, humanistas, e liberais ao velho estilo de Sá Carneiro: Liberais onde conta - na vida das pessoas concretas, que se querem livres e emancipadas."

domingo, 9 de março de 2014

"Controlar as emoções ..." - A Obra de Uma Vida de Um Maçon

"Controlar as emoções ..." Tê-las, portanto. Confronto-me, mais vezes do que gostaria, com a inabilidade de alguns maçons, homens que são, em lidar com sentimentos e emoções. Talvez se gaste tempo a mais a falar em "ferramentas" e menos a falar no que essas mesmas "ferramentas" representam nas nossas vidas e do quanto que nos impelem ao trabalho da pedra, a todos os níveis, incluindo ao emocional. De nada serve apelarmos ao crescimento quando somos governados por uma certa "pequenez" de "sentimentos". Deixo aqui, pois, o meu sentimento. Os maçons são, tembém, emoções. Mas emoções "trabalhadas", "alquimizadas". Significa isto que a "tendencial perfeição" que buscamos se manifesta também na forma como nos comportamos na vida e, sobretudo, perante os outros. A este propósito, ocorre-me a história de Alexandre. Derrotou e pôs em fuga Persas, Hircanos, Indianos e todos os demais povos que, desde o Oriente, se espalharam até ao mar oceano; quando, porém, de uma vez, ordenou a morte de um amigo e de outra perdeu um segundo amigo, Alexandre perdia o controlo sobre as suas emoções. Deitava-se às escuras, lamentando-se, num caso, do crime cometido e, no outro, prostrando-se de saudades. O vencedor de tantos reis e de tantas nações deixava-se vencer pela ira ou pela amargura! E como não seria assim, se ele próprio julgava preferível conquistar o universo a dominar as suas paixões? [Alexander Persas quidem et Hyrcanos et Indos et quidquid gentium usque in oceanum extendit oriens vastabat fugabatque, sed ipse modo occiso amico, modo amisso, iacebat in tenebris, alias scelus, alias desiderium suum maerens, victor tot regum atque populorum irae tristitiaeque succumbens; id enim egerat ut omnia potius haberet in potestate quam adfectus.] (Séneca, Cartas a Lucílio XIX.113.29, Gulbenkian, Lisboa: 2009.) Ocorre-me sobre isto a citação biblica: "De que aproveita ao homem ganhar o mundo todo e deitar a perder a sua alma?" [Mc 8, 36]. Símbolos não alquimizados interiormente são ocos e vazios. Os maçons são "pedras vivas". Naturalmente, sentem como homens que são. A sua mestria, porém, suscita-lhes o tal "controlo". O seu comportamento de homens absolutamente íntegros ("justos e de bons costumes") não lhes permite vulgares posturas na sua vida civil, sob pena de deixar aos que os rodeiam, família, amigos, conhecidos e outros, uma imagem de falibilidade que a todos fragiliza. O que está em causa é uma postura de vida, ante a vida. Se se deixa acometer pela vulgaridade perde tudo a que se comprometeu quando abraçou a Causa Maior da sua Vida [a Maçonaria] e, nessa sua perda individual, perde a própria Maçonaria por não ter conseguido aquela façanha maior a que se propõe: a de mudar o Homem/Iniciado, para melhor. Alquimizar os símbolos conferindo-lhe vida própria, sentindo-os no coração e aceitando-os na alma é o desafio a que nos propusemos quando nos entregámos a esta Causa. Se é dificil suplantar emoções? Claro que é. Por isso é Obra digna de um Maçon. De nada valerá apregoar ferramentas quando não as apreendemos e quando as mesmas não produzem em nós o efeito transformador desejável. Homens Justos e Perfeitos! AM

quarta-feira, 5 de março de 2014

José Gil - "O roubo do presente" (o retrato de um Portugal na miséria e na dor)



"Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspectivas de vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.

O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu.

O poder destrói o presente individual e colectivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho.

O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stresse, depressões, patologias borderline enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens).

O presente não é uma dimensão abstracta do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direcções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público.

Actualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais. O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convívio. A solidariedade efectiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil.

Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser espectral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.

Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português. Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do nosso poder de acção. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país."

(des)Acordo Ortográfico - Mário de Carvalho - Fervedouro dos desacertos e desconcórdias

O Acordo Ortográfico foi uma aventura - em parte bem-intencionada - que se deixou levar demasiado longe. Na discussão têm fervilhado as proclamações e os equívocos. Ninguém está livre deles. Não tenho a pretensão de exprimir verdades absolutas. Mas agora que o assunto vai à Assembleia da República talvez consiga ser útil com algumas modestas observações à margem, fora de argumentários, gesticulações e vozearias. De notar que, sejam quais forem as posições tomadas, há, de um e do outro lado, pessoas que merecem respeito e cujo apreço pela Língua portuguesa não pode ser posto em causa.
1. Nem tudo o que muda é progresso. Uma amputação é uma mudança. O apodrecimento também é um processo de transformação. Mudar para pior não é progresso, é regresso. Parece-me equivocado colocar as 'simplificações' e as 'uniformizações' do lado das aspirações sociais. Diminuir o alcance de um texto (cerceando-lhe a memória histórica, por exemplo) é empobrecer quem o lê. E isso não é 'moderno', muito ao contrário, é uma limitação à liberdade.
2. O chocalhar de quinas, sabres e castelos, com gritos de “sus! A mim!”, como se a Pátria imemorial estivesse ameaçada e as cinzas dos nossos maiores estremecessem nos seus túmulos, parece-me que vem em má ocasião. Não é isso que está em causa. Ninguém pretende desacatar D. Afonso Henriques.
3. Alguns escritores e outros práticos da Língua pensam (como Saramago disse a propósito de uma tentativa de acordo ainda pior) que “isso é coisa para revisores”. Eu tenho uma enorme estima por revisores, com quem venho aprendendo muito. Têm-me poupado alguns deslizes e até dispensado - o que muito agradeço - de me exasperar com minudências e ambiguidades antipáticas. Ao contrário do que pensa a sabedoria popular (com a sua atávica propensão para o erróneo), os escritores não têm que papaguear a gramática de cor. Mas a gramática não serve apenas “para um toque de pitoresco”, como ironizava Mark Twain. Valerá a pena, pelo menos, dar notícia de um desconforto.
4. O que não vale a pena é bramir, vociferar, pôr-se aos encontrões e transformar a questão em matéria de claque clubística, na disputa pelo alarido mais ruidoso.
5. A Língua é uma realidade entranhada, que evolui e se transforma em interacção com as transformações sociais e históricas, e de acordo com as suas próprias leis (às vezes misteriosas). Não me parece adequado usá-la para experimentações. “Pesquisas fazem-se em casa, já dizia a minha avozinha que era escritora”, escreveu algures Alexandre O'Neill. Impõe-se a máxima cautela quando se toca em aspectos relacionados com um uso quase milenar e com um corpus literário apreciável. A ortografia não é tão neutra como se pensa. Os matizes, as deslocações de sentidos são de uma extrema sensibilidade.
6. Tremendo e custoso equívoco tem sido considerar-se que as questões da Língua são apenas com os linguistas. A derivação 'língua>linguista' leva muitas pessoas, com bom ânimo, a fiar-se nas aparências e a pensar que os linguistas estão na primeira linha da discussão sobre a Língua. O engano ainda cresce com a invocação de alguns nomes prestigiadíssimos (e com razão) naquela especialidade. Não é o caso, como parece evidente, do doutor Casteleiro. Trata-se, no meu entender, de um erro funesto. Talvez eu consiga explicar isto melhor com exemplos: Um osteopata que saiba tudo sobre o esqueleto humano está preparado para dar consultas de Psiquiatria? Um engenheiro naval, hábil em desenho, está apto a comandar um navio? Enfim, confiariam um batalhão a um historiador militar? Note-se que eu não tenho nenhum rancor a linguistas. Muito ao contrário. Por alguns - que até poderia nomear - tenho uma afectuosa admiração. Mas chega a ser injusta para eles a responsabilidade que lhes tem sido atribuída na questão ortográfica.
7. Infelizmente, não é pela ortografia que o Português de Portugal e do Brasil divergem. Esta talvez seja, até, a disparidade mais insignificante. Não vale a pena estar a trazer para aqui exemplos que são do domínio público e só não os vê quem não quer. É um problema sério para que eu não tenho soluções e que merecia ser ponderado, calmamente, cautelosamente, por quem possuísse os necessários saber, experiência e perícia. Um ou outro linguista, creio, seria até bem-vindo a esse trabalho.
8. Tem aparecido com alguma frequência o fantasma do “conformismo”. Que as pessoas estariam acostumadas a escrever de certa forma e existiria, sempre a puxar à retaguarda, um lastro de inércia, inimigo das melhorias e transformações … Esse argumento é utilizado precisamente pelas pessoas que já se acomodaram à prática do Acordo Ortográfico (nas escolas, nos jornais, etc.) e têm medo de que as façam estudar de novo. 
Não é nenhum bicho-de-sete-cabeças. Bastam, de facto, umas noções elementares daquela etimologia que fizeram desaparecer das escolas, não se sabe a que propósito. Porventura, certo desprezo subliminar pelo ensino de massas, pois, em algumas almas, tratando-se de educação para pobres, “para quem é, bacalhau basta”.
Acho que se vai a tempo de reconsiderar. Desmobilizar a aventura. Acredito que os custos da manutenção do Acordo viriam a ser mais graves que os da suspensão. Não há pressa. E não gostaria de ver os defensores do Acordo na posição de vencidos que grande parte deles, pela sua boa-fé, não merece. 
E aqui ficam estes pontos que espero que contribuam um pouco para a discussão serena do Acordo Ortográfico. O meu propósito, não sei se conseguido, é evitar as toadas agressivas que por aí têm chegado quase ao destempero. Vamos com calma." (Mário de Carvalho)

terça-feira, 4 de março de 2014

Ainda sobre os julgamentos sumários - a perspectiva do José António Barreiros

A "democracia" da Justiça sumária
"Segundo o Código de Processo Penal de 1929, assinado por António de Oliveira Salazar e pelo Ministro da Justiça Mário de Figueiredo, em plena Ditadura Nacional, podiam ser julgados em processo sumário as transgressões e os crimes puníveis com prisão, desterro ou multa até seis meses, ou infracções a isso inferiores quando cometidas em flagrante delito (artigos 67º e 556º a 561º). 
Com o Código de Processo Penal de 1987 do Estado de Direito Democrático, na sua versão inicial, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17.02, o processo sumário passou a ser possível de aplicar a crimes puníveis com pena de prisão de máximo até três anos (artigo 381º). 
Em 2007, com a nova redacção conferida ao citado artigo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o processo penal passou a ser aplicável a crimes passíveis de prisão até cinco anos. 
Com a redacção de 2012, decorrente da Lei n.º 20/2012, de 20.02, por proposta do Governo de Passos Coelho, sendo Ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, o processo sumário passou a ser aplicável a todos os tipos de crimes, incluindo homicídios, pois só ficaram excluídos «aos detidos em flagrante delito por crime a que corresponda a alínea m) do artigo 1.º ou por crime previsto no título iii e no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário». 
Eis como estamos em matéria de protecção de direitos sob a bandeira do Estado de Direito Democrático. Não fosse o Tribunal Constitucional ter considerado «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição» [texto integral aqui] e, entregues à concepção de Justiça dos nossos políticos era este impudor. 
P. S. Na sua declaração de voto, no sentido de que não existia inconstitucionalidade alguma Maria João Antunes afirma que em relação àquilo que de mais grave poderia ser julgado em processo sumário, porque punível com prisão superior a oito anos, a lei permite que o próprio Ministério Público em nome da defesa e o arguido possam requerer o júri. Que liberalidade e que lógica não é?" José António Barreiros

domingo, 2 de março de 2014

Lima de Freitas - A ilustração do "Porto de Graal"


A propósito da ilustração do livro de Mestre Lima de Freitas, Porto do Graal, que aqui deixo, permitam-me deixar algumas anotações pessoais.
Como se sabe o Mestre era um profundo conhecedor da simbologia profunda deste tema.
Assim, a taça (emblema do feminino) contém o dragão cuja força faz antever o mistério de um casamento mágico, ritual, do feminino e do masculino e dos opostos.
O vaso ou a taça representariam o LAPIS PHILOSOPHORUM, a Pedra filosofal. Algo que contém e é contido, algo que tendo muitos ou todos os nomes, não tem nenhum ... A equivalência entre o vaso e a Pedra surge de modo especial na lenda contada por Eschenbach, no seu PARSIVAL: "Num pano de seda verde ela trazia a perfeição do paraíso, ao mesmo tempo raiz e ramo. Era uma coisa chamada o Graal ultrapassando toda a perfeição terrestre." E ainda: " Eles (os cavaleiros do Graal) vivem por meio de uma pedra da mais bela qualidade. Se não a conheceis, direi aqui o seu nome. Lapsit exillis (sic) é o seu nome."
Das obras que melhor estudam estes rituais destaco as de Jessie l. Weston, From Ritual To Romance (1920) e The Quest Of The Holy Grail (1913).
Lima de Fretas parte do mito e da sua vocação graálica e mística: "Irrompendo do inconsciente dos povos, os mitos são as 'notícias' que nos chegam dos arquétipos inexprimíveis". (Lima de Freitas)
A sua princesa do Graal é a personificação do feminino, da natureza-mãe, que oferece a vida e o bem estar ao cavaleiro a quem entrega a taça [e que, simbolicamente, pode ser em si mesma, também, o feminino]. A Anima de que o herói adquire consciência e, assim se redime, a alusão à terra "gasta" e que falece à sua volta. A terra voltará a verdejar, o que justifica a presença do dragão adentro da taça. 
O Mestre LF pode ter-se inspirado no espírito místico de Fantin-Latour (Preludio de Lohengrin, óleo de 1892), ou em Dante Gabriel Rossetti (A Virgem do Santo Graal, 1857), confirmando aquela irrefutável verdade da eternidade do mito, da sua continuidade e permanência. Cada artista, seja de que Arte for, empresta à sua própria obra a interpretação que os seus sentidos dele fazem. Ao contrário da obra de Rossetti, pobre em vibração, a princesa desta obra ergue, como que em veneração, uma taça, representando algo que a transcende, um casamento do ceú e da terra [assim o representavam os mais antigos papiros do Egipto].
"Irrompendo do inconsciente dos povos, os mitos são as ‘notícias’ que nos chegam dos arquétipos inexprimíveis (...)." dizia Lima de Freitas
O quadro, marcado pelo forte simbolismo do que entendia ser "a riqueza ocultada da tradição mítico-espiritual portuguesa" recorda-me a lenda oriental que profetiza que "o cálice sagrado (o Graal que já teria estado em Portugal) será encontrado quando se aproximarem os tempos de Shamballah", o lendário reino do Prestes João da Tradição Lusiada, os Reinos Internos da Terra ou Agharta, o V.I.T.R.I.O.L. dos Rosacruzes e da Maçonaria, o Lugar Sagrado onde Melquisedeque dirige os "destinos do Mundo".
A sua obra revela a “riqueza ocultada da tradição mítico-espiritual portuguesa”, muito semelhante à que Fernando Pessoa já tinha vislumbrado e transmitido na “Mensagem”: “Cumpriram-se os Mares, o Império se desfez. Senhor, falta cumprir-se Portugal!”.
Portugal, este pequeno país lusitano (de Lux-Citânia, lugar de Luz), à Beira-Mar plantado cujo papel incumprido o saudoso Prof. Agostinho da Silva idealizava como o “Menino Jesus das Nações”.
Aqui fica um poema do poeta português Augusto Ferreira Gomes (amigo de Fernando Pessoa) que ilustra bem quer o pensamento de Pessoa quer a mensagem subliminar do Mestre LF: “Ao nocturno passado - fé crescente - erguendo olhos em sombras abismados, e fechando-os de novo marejados pelo sinal da névoa ainda ausente, todos sentem que a alma, em vão dormente, cisma com horizontes dilatados; e vivem a verdade de esperados domínios. E assim, abstractamente, se constrói um Império ao pé do Mar, - sentido universal de um só altar - fundindo-se no céu imenso e aberto... Gentes! Esperai que Deus, com sua mão, desfaça para sempre a cerração que envolve há tanto tempo o Encoberto... Quando dado o sinal, o Império for e quando o Ocidente ressurgir, no momento marcado hão de tinir pelos ares as trombetas do Senhor. E haverá pelos céus, só paz e amor. Um só Cálix de Ouro há de fulgir, uma só cruz na Terra há de existir, sem inspirar receio nem temor... Será a hora estranha da Verdade. E morta a pompa do pagão sentido, surgirá, então a Outra Idade. Acabará este viver incerto. Será o Império único e unido Quando der sinal o Encoberto!"
E seria então, na perspectiva de Lima de Freitas, pautada na sua obra, de que este quadro é apenas um exemplo, e, também, na visão de Pessoa, que o "V Império" haveria de surgir na Terra, sob o Alvorecer duma Nova Era! AM

Ucrânia: um País sofrido, um Povo sofrido


A meio de um apontamento de opinião sobre a situação da Ucrânia, lembrei-me disto, pensando nos velhos e nas crianças em sofrimento, sempre mais frágeis. Há um poema de Paul Celan, o "Branco", que nos atira para a ferida da fragmentação e da alma quebrada. "Quando o branco nos agrediu, de noite; quando do púcaro das esmolas saiu mais do que água; quando o joelho esfolado fez sinal à campaínha do sacrifício: Voa! - Então estava eu ainda inteiro." Este sentido de "du wirst nicht grau", não envelheces, amplia-se lendo o poema Álamo (Espenbaum) onde a morte cruel e prematura da mãe nos é contada, usando a mesma imagem do cabelo que não chega a poder branquear com a idade; tal não foi permitido... "Álamo, a tua folhagem espreita branca na escuridão. O cabelo da minha mãe nunca foi branco. Dente-de-leão, verde como tu é a Ucrânia. A minha loura mãe não voltou para casa. Nuvem de chuva, demoras-te nas fontes? Minha mãe silenciosa chora por todos. Estrela redonda, atas o nó de ouro. O coração da minha mãe foi ferido com chumbo. Porta de carvalho, quem te desengonçou? A minha suave mãe não pode vir." Este poema foi escrito em 1945, em Bucareste, relembrando a mãe, assassinada na Ucrânia, no campo de concentração alemão Michailowka de Gaissin, no Inverno de 42-43. Um País sofrido, um Povo sofrido. AM