"Duas causas concorrem para que a vida seja como é: a natural imperfeição do género humano e a presunção de que o mundo pode mudar-se para benefício geral. O resultado disto é um pessimismo tão desastrado como, igualmente, confirmado pela História.
Em Portugal, graças à nossa tendência para a presunção e para a pompa, confunde-se muito o pessimismo com a tendência para a catástrofe. A Tia Benedita, que representa o braço do reaccionarismo na família, duvidava de tudo excepto dos seus dogmas particulares. Ela não depositava grande confiança nas realizações humanas, o que, além de amargurá-la, não lhe trazia desilusões de monta; limitava-se a achar que a família estava condenada a perecer sob os ataques da Maçonaria, da República e da imoralidade. O velho Doutor Homem, meu pai, apreciava-lhe a capacidade de não acreditar em nada, bem como a fidelidade às suas obsessões; o Tio Alberto, o bibliómano e gastrónomo de S. Pedro dos Arcos, limitava-se a viajar para não sucumbir ao pessimismo ancestral da família. Percorrer o mundo e regressar de mãos vazias pode bem ser um resumo da sua vida, de que sobraram uma biblioteca raríssima hoje em dia no Minho, alguns maços de cartas trocadas entre a Serra de Arga e as ventanias do Cáspio — e lendas que o elegem como o grande aventureiro desta família preguiçosa e renitente.
Nem a Maçonaria, nem a República nem a imoralidade — reunidas ou por separado — conseguiram demover os Homem de cumprir o seu destino de derrotados da História. Com poucas ou nenhumas diferenças, os Homem de hoje limitam-se a cumprir os desígnios do passado: permanecerem despercebidos. As novas gerações consomem haxixe e ouvem rock, trocam de cônjuge, vivem a sua vida e evitam comprometer-se. Para seguir este caminho é necessária uma dose substancial de paciência. O velho Doutor Homem, meu pai, vendo o caminho que as coisas tomavam, e prevendo revoluções e catástrofes (que, de qualquer modo, só se realizaram pela metade), o velho advogado suportou com estoicismo as ilusões dos outros, sorrindo afavelmente para os excessos cometidos e a cometer. “Filosofemos”, pedia um derrotado político nas páginas do 'Eusébio Macário', de Camilo. Quer dizer: “Mudemos ao sabor da corrente — e inventemos uma explicação.” Ele nunca precisou de evitar esses escolhos. Acreditou que o mundo continuaria a organizar-se para ser cada vez mais tolerável mas imperfeito. Agiu em conformidade, dedicando-se à poda das japoneiras no jardim do casarão de Ponte de Lima. Um velho conservador nunca se surpreende com a história." in Domingo - Correio da Manhã - 21 Fevereiro 2010