A Europa precisa de um novo Lutero, LA REPUBBLICA ROMA, Barbara Spinelli
"A União Europeia parece uma Igreja corrompida, governada por um país, a Alemanha, que impõe uma ortodoxia financeira dogmática. Para a colunista Barbara Spinelli, a política deve retomar o controlo da situação, através de um cisma protestante, gerado por iniciativas populares.
Este tipo de coisas só acontece na Europa à deriva, não por razões económicas, mas devido à inépcia convulsiva da sua política: estamos a falar do escândalo de um Tribunal Constitucional alemão determinar hoje a vida de todos os cidadãos da União, enquanto o Tribunal Constitucional português não tem qualquer peso. Referimo-nos a Jens Weidmann, o presidente do banco central alemão, que acusa Mario Draghi de exorbitar as suas funções – salvar o euro, com os meios à sua disposição – e declara descaradamente guerra a uma moeda a que chamamos única, precisamente porque não pertence apenas a Berlim. (...) Algo não está a funcionar bem no percurso atual da União Europeia, em que o artigo 3º nem sequer aparece no site de Internet do BCE, talvez por temor que Berlim fique ressentida.
(...) Presentemente, a União Europeia parece uma igreja corrupta, a precisar de um cisma protestante: uma Reforma de credo e de léxico. De um plano pormenorizado (as teses de Martinho Lutero tinham 95 pontos). Só opondo-lhe uma fé política poderemos descartar o papado económico. É a única maneira de romper com a religião dominante, e Berlim terá que escolher entre uma Europa à alemã e uma Alemanha à europeia, entre a hegemonia e a paridade entre os Estados-membros. É uma escolha com que a Europa se confronta sistematicamente: Adenauer dizia, em 1958, que a Europa “não deve ser deixada na mão dos economistas”.
A ortodoxia germânica não é de hoje. Afirmou-se a seguir à guerra, com o nome de “ordoliberalismo”: como são sempre racionais, os mercados sabem perfeitamente corrigir os desequilíbrios, sem interferência do Estado. É a ideologia da “casa em ordem”: cada país expia sozinho os seus pecados (em alemão, “Schuld” significa tanto “dívida” como “culpa”). Solidariedade e cooperação internacional vêm depois, como recompensa para os países que fizeram bem o trabalho de casa. Tal como em Inglaterra, a democracia é invocada de modo falacioso: delegando pedaços de soberania, esvaziam-se os parlamentos nacionais. E é assim que o Tribunal Constitucional alemão é chamado a pronunciar-se sobre qualquer iniciativa europeia.
Se existe embuste, é porque, dentro do navio Europa, as democracias não estão todas em pé de igualdade: há sacrossantos e condenados. Em 5 de abril, o Tribunal Constitucional português invalidou quatro medidas da cura de austeridade impostas pela troika (cortes nos salários da Função Pública e nas pensões de reforma), por serem contrárias ao princípio da igualdade. O comunicado divulgado no dia seguinte pela Comissão Europeia (dia 7 de abril), ignora completamente o veredicto do Tribunal e “congratula-se” por Lisboa prosseguir a terapia acordada, recusando qualquer renegociação: “É essencial que as principais instituições políticas portuguesas permaneçam unidas no apoio” à recuperação em curso. A diferença de tratamento dos juízes constitucionais alemães e portugueses é tão desonesta que o ideal europeu vai ter dificuldade em sobreviver junto dos cidadãos da União Europeia."