quarta-feira, 1 de maio de 2013

"Sei que não vou por aí!" - José Régio


"Vem por aqui” — dizem-me alguns com olhos doces, Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: “vem por aqui”! Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
A minha glória é esta: Criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. - Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre a minha Mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos…
Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: “vem por aqui!”?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí…Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós Que me dareis machados, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?…
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos…
Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios…
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém. Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: “vem por aqui”!
A minha vida é um vendaval que se soltou. É uma onda que se alevantou. É um átomo a mais que se animou… Não sei por onde vou, Não sei para onde vou — Sei que não vou por aí!" (José Régio, Cântico Negro, Poemas de Deus e do Diabo, 4a ed., Lisboa, Portugália, 1955, pp. 108-110.)