Portugueses no Holocausto, de Esther Mucznik, sonda a posição de Portugal na Segunda Guerra Mundial e a sua política em relação aos refugiados judaicos. Uma obra que toca numa falha da identidade europeia.
O título Portugueses no Holocausto poderá contradizer uma certa memória popular da nossa História. Portugal atravessou a Segunda Guerra Mundial protegido por uma neutralidade estrategicamente delineada por António de Oliveira Salazar. O país "salvou-se" da guerra, e Lisboa tornou-se um palco de passagem para quem fugia dela. Mas o tempo veio revelar outra verdade histórica, e a neutralidade portuguesa, como de outras nações, teve afinal graves custos humanos que redundaram na tragédia montada passo a passo pela Alemanha nazi: a Solução Final, plano de matança da população judaica europeia em campos de concentração.
Esther Mucznik, vice-presidente da Comunidade Israelita de Lisboa e estudiosa das questões judaicas, clarifica com este livro várias facetas da guerra: a realidade da Lisboa neutral, a política do país entre dois campos em confronto, e o destino dos judeus europeus que Portugal recebeu e dos que não quis acolher.
Ao Ípsilon, a autora explica as origens da sua própria chegada a Portugal: "A nossa comunidade é fundada por judeus sefarditas [oriundos da Península Ibérica], mas, na realidade, começam a chegar pessoas entre o final do século XIX e o início do século XX, como os meus pais, que fogem do anti-semitismo na Polónia, na Ucrânia ou na Rússia." Com a chegada de Hitler ao poder, na Alemanha, em 1933, a perseguição dos judeus europeus começa a ganhar contornos insustentáveis. "Os refugiados de Hitler começam a vir logo em 1933 e a Comunidade Israelita de Lisboa cria a COMASSIS, a comissão de assistência aos refugiados." Outras associações ajudam os que conseguem passar as várias fronteiras para chegar a Portugal, que entretanto abrevia os vistos de estadia de "emigrantes judeus" para 30 dias e apenas sob apresentação de um visto de entrada noutro país e do respectivo bilhete de embarque. Nos EUA, o Emergency Rescue Committee, fundado em Nova Iorque, tenta obter os documentos necessários para facilitar o exílio de uma certa elite (artistas como Marc Chagall, Max Ernst ou Béla Bartók passaram por Portugal em trânsito para a América), mas a maioria dos refugiados vê-se a braços com a angústia do mercado negro, da repatriação ou de uma possível invasão nazi à Península Ibérica.
"Com o início da guerra, os judeus vão para França com a esperança de que esta iria opor-se à ocupação alemã. Com a queda de França, é o descalabro", diz Mucznik. Os que chegam a Portugal "estavam angustiados, tinham medo de que a Península fosse ocupada." "Viviam com uma dor intensa, nomeadamente os judeus alemães, porque eram profundamente ligados à cultura alemã e tinham a sensação de deixar a Europa para sempre", continua.
Apesar das restrições, são criadas "zonas de residência de fixa" e de circulação limitada nos arredores de Lisboa e no centro do país, para acolher refugiados. "Muitos começam a vir pela mão de Aristides de Sousa Mendes, que passa vistos num número que nunca conheceremos exactamente. Alguns vistos estão registados no Consulado, outros distribuiu-os em papéis onde escrevia ‘visto' e punha um carimbo. Outras pessoas vêm clandestinamente, e, face a esta situação, é a própria polícia política que tem a ideia de as concentrar." No entanto, o espírito encontrado no seio da população portuguesa, segundo os sobreviventes, é de compaixão e ajuda. "Havia anti-semitas no Governo e na polícia política, mas a ideologia dominante do regime não era essencialmente anti-semita. Naquela época, era pior ser comunista do que ser judeu em Portugal", argumenta a autora. Contudo, a posição do cônsul português em Bordéus constituía uma desobediência frontal às ordens do regime. "Ninguém foi tão punido como Aristides de Sousa Mendes, que chega a Portugal e é um homem completamente só - isso é revoltante. Nem a Igreja Católica [fez algo] nem o campo anti-fascista, porque, para este, tratava-se de um homem do regime."
Os portugueses que Portugal não quis
Perante a ameaça nazi, os judeus europeus de origem portuguesa, descendentes de famílias sefarditas perseguidas pela Inquisição (criada, em Portugal, no século XVI), viram-se para o seu país de berço numa tentativa de salvarem a vida. Muitos deles têm nomes portugueses e celebram a sua vida religiosa ainda na língua portuguesa. "A comunidade de Amesterdão do século XVII é uma comunidade poderosíssima, não só em termos económicos mas também intelectuais e religiosos. Isso vai manter-se até à Segunda Guerra Mundial", explica a autora. É uma comunidade destinada à extinção: quase todos os quatro mil judeus de origem portuguesa em Amesterdão são assassinados. "Em Salónica, isso não existia, mas ficou a língua, o ladino". Também aí, a extinção. apenas cinco por cento da população judaica de Salónica escapa à deportação. Nos bastidores desse trágico desfecho esteve a passividade de Salazar.
É em 1942 que se iniciam as deportações em massa para os campos de concentração. O Terceiro Reich comunica então aos países neutrais a oportunidade de repatriarem os judeus que são seus cidadãos nacionais. Mas Salazar recusa estender a nacionalidade portuguesa aos judeus europeus de origem portuguesa mesmo perante esta janela de sobrevivência que então se abriu: "Antes de tomar uma decisão, Salazar pede ao cônsul para perguntar [o que fazer] aos alemães; estes respondem que se [os cidadãos em causa] não tiverem nacionalidade portuguesa não podem sair. Salazar acata sem fazer pressão nenhuma, nem para documentos transitórios como os que foram dados aos húngaros para ficarem sob protecção na embaixada", sublinha a autora, aludindo à acção do embaixador Sampaio Garrido, que aluga uma propriedade nos arredores de Budapeste para albergar refugiados sem conhecimento do regime, situação tolerada numa altura em que a guerra se aproxima do fim.
Como explicar a atitude de Salazar? "É uma estratégia política muito definida: a neutralidade a todo o custo, [para] enriquecer Portugal [mantendo a Alemanha e a Inglaterra como parceiros comerciais], e, ao mesmo tempo, salvar o regime. É por isso que [a atitude] muda quando a guerra está perdida [para os alemães], mas não radicalmente. Hitler morre e Salazar põe a bandeira a meia-haste, mas, ao mesmo tempo, vai à missa pela alma de Roosevelt." No fundo, considera, o ditador português "não queria desagradar aos alemães, pois receava que a Alemanha invadisse a Península Ibérica."
Mas essa neutralidade obstinada revela também sinais do imperturbável isolamento que caracterizaria a vida do regime mesmo nas décadas seguintes. "Salazar não podia fechar as portas completamente, mas tentou-o o mais possível para evitar o contágio dos costumes e das ideologias dos refugiados." Para Mucznik, "Salazar tinha uma mentalidade de guerra-fria avant la lettre: não queria uma derrota total da Alemanha porque partilhava com Hitler um inimigo principal, o bolchevismo." E, perante a tragédia que grassava na Europa, revelou um traço de carácter: "Uma total indiferença ao sofrimento dos judeus, o que não existia nos diplomatas que estavam no meio da catástrofe". Essa indiferença só se desfaz quando se avizinha a derrota alemã. Aí, "Salazar salvou pessoas que tinham a nacionalidade [portuguesa] do tempo da República e que a foram revalidando": cerca de 200 pessoas originalmente de Salónica que tinham estado em França entre 1943 e 1944.
Uma tragédia europeia
Mas a intransigência política de Salazar, apesar dos apelos dos diplomatas que o vão informado regularmente, não se encontra isolada no continente europeu. A Segunda Guerra Mundial terminou sem que fosse tomada uma decisão política ou militar relativa à destruição dos campos de morte montados pela Alemanha nazi. Tal como antes nenhum país europeu se mostrou disponível para abrir as suas fronteiras a um crescente número de refugiados judeus. "Em 1938, na Conferência de Evian, ninguém quis saber o que é que acontecia aos judeus alemães que estavam desesperados para sair," diz Mucznik. Para a autora, "Portugal não fica pior no retrato do que os outros países". Tal também se deve a outro factor essencial: o Holocausto desenvolveu-se progressivamente na Europa sem que o continente soubesse, até aos últimos instantes, o destino terrível que esperavam, de facto, milhões de pessoas. "Na altura, as pessoas não tinham a noção do que estava a acontecer", argumenta a autora. "Nunca mais me esqueço do que uma sobrevivente me disse: ‘Esperávamos o pior, mas não o impossível'. É aquilo a que os historiadores chamam ‘a barreira da lógica' - uma barreira na nossa mente sobre aquilo que pode acontecer. Quanto mais se investiga sobre o Holocausto, menos se percebe."
Algo que choca em qualquer investigação sobre o Holocausto é a percepção que se ganha da progressiva e paciente máquina de exterminação montada pelo regime nazi: tudo começa com uma feroz propaganda anti-semita, evoluindo para a exclusão social, política e económica dentro das cidades (com a posterior construção de guetos), e, depois, para a deportação final com destino a um assassínio em massa nas câmaras de gás. "Os historiadores dividem-se entre aqueles que acham que a ideia do extermínio estava colocada desde o início e os que pensam que há uma causalidade terrível. Julgo que foi isso que aconteceu, e há toda uma experimentação [sobre esta teoria]", afirma Mucznik. "Mas o que é real é que o Holocausto aconteceu não apesar da cultura mas utilizando os meios dessa cultura de um ponto de vista tecnológico e científico." Ou seja, uma máquina de morte construída por uma das culturas mais fortes do Ocidente, alicerçada na estrutura e na linguagem camuflada de uma fortíssima burocracia (em nenhuns dos documentos oficiais nazis se vislumbra uma referência directa ao que aconteceu realmente).
Mas a eficiência da matança não se deve apenas à máquina nazi - esta encontrou a colaboração e a cumplicidade de várias nações europeias. "Há países onde o anti-semitismo era grande, como em França, onde o caso Dreyfus é um exemplo disso. Foi o único país com um projecto próprio feito pela polícia francesa." O novo presidente francês, François Hollande, assumiu as responsabilidades francesas no Holocausto a 22 de Julho deste ano, no 70.º aniversário da rusga do Vélodrome d'Hiver, onde 12.884 pessoas foram capturadas. "A Leste, a realidade é mais complicada porque existem duas ditaduras. A ditadura soviética é mais recente, longa e atroz do que o nazismo. A população global, e não apenas os judeus, sofreu mais com o comunismo."
Aprender com a História
A sensação de que a maior tragédia do século XX europeu passou ao lado do continente - e de que todas as nações europeias foram afinal tocadas por ela, incluindo Portugal - deixou feridas profundas que deram lugar a um silêncio. "Muitas pessoas não quiseram falar, mas falei com um caso raríssimo: Shlomo Venezia, um sobrevivente dos Sonderkommando [unidades de prisioneiros judeus, nos campos de concentração, que lidavam com os restos mortais das vítimas das câmaras de gás]. Guardou um silêncio de 40 anos em relação à sua família, disse-me que tinha de reconstruir a sua vida e que optou por não falar, mas tornava-se cada vez mais tarde." Para Esther Mucznik, "havia outra razão para o silêncio: ninguém queria ouvir": "Primo Levi, que escreveu logo Se Isto é um Homem, não foi publicado pela sua editora de esquerda durante anos [a publicação só teria lugar em 1957]. Raul Hilberg voltou à Alemanha para a libertação dos campos e resolveu fazer toda a sua pesquisa sobre isso. Mas apenas o fez numa editora pequena e passados vários anos [The Destruction of the European Jews, 1961]."
Mas se o tempo tarda em sarar as feridas, cuidar da memória de forma construtiva é uma necessidade imperiosa para defender uma identidade europeia em paz, sobretudo perante a ascensão persistente de ideias radicais em governos democráticos e partidos europeus. Segundo Mucznik, "as sociedades continuam à procura de bodes expiatórios e há também saudades do nacionalismo: a Hungria ou a Polónia são países que foram ocupados e desmembrados por vários outros, o seu nacionalismo é muito forte". E "o nacionalismo ferrenho de extrema-direita" hostiliza não apenas os judeus mas "tudo o que não é tipicamente" local. Uma atitude que constitui o primeiro passo do perigo universal da banalização. "Não reflectimos sobre isso nem tirámos as lições, e a prova é que as coisas vão-se repetindo pela indiferença das nações. A saturação [do estudo do Holocausto] é directamente proporcional à ignorância. O Holocausto é património da Europa e temos de conviver com isso, não é apenas um problema entre judeus e alemães. Devíamos tentar aprender com a História: é quase impossível, mas temos essa obrigação."