sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O CORTE SALARIAL DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA “PASSADA”

A questão do corte salarial dos funcionários públicos para além de suscitar acesas discussões sobre a sua justeza levanta, também, algumas quanto à sua constitucionalidade. A este propósito, trouxe-se para a ribalta um acórdão do Tribunal Constitucional de 2002, em que este declarou a inconstitucionalidade de uma diminuição de salários operada por via do Orçamento do Estado, argumentando com a violação do princípio da confiança. O que todos se indagam é se a similitude da situação é tamanha que a decisão possa igualmente valer para a actualidade. Como vulgo se diz em matéria de Direito “a doutrina divide-se.
No dito acórdão (o nº 141/2002) tratava-se de estabelecer limites salariais, assumindo-se como valor de referência o vencimento do Presidente da República, o que acabou por atingir nem meia dúzia de indivíduos - os membros de gabinetes de órgãos de soberania, e, sobretudo, os da Assembleia da República, em que me encontrava em funções por altura da Presidência do Professor Barbosa de Melo, como adjunta do Secretário-Geral, o saudoso Dr. Luís Madureira, de que fui assessora aquando das suas funções como secretário de Estado da Administração Interna, creio que lá por 89/90, e depois adjunta nas ditas funções.
Sabia-se que a decisão tinha subjacente razões meramente políticas, e dizia-se que Cavaco Silva oferecera um presente “envenenado” a Luís Madureira, nomeando-o para um lugar – mais que merecido e que desempenhou com a exemplaridade que lhe era peculiar - mas subtraindo-lhe a remuneração devida e esperada aquando da nomeação. Repare-se que nisso não houvesse qualquer – nem tal nunca foi invocado – interesse público. Mas esse era um tempo em ninguém punha em causa as “regras” do jogo, tal era a dureza conhecida da resposta.
O acórdão é claro quando afirma que não havia um qualquer princípio geral e abstracto que proibisse a diminuição de salários na função pública, mas é também claro quando admite que uma redução salarial possa ter-se por inconstitucional, por atentado ao princípio da confiança.
Hoje carecia de ser feita uma perspectiva casuística tendo como parâmetro o princípio da proporcionalidade, pesando até que ponto o interesse público pode, face à conjuntura actual, justificar a contracção de direitos dos trabalhadores. Dito de outro modo, são essas medidas indispensáveis e, mais, são proporcionais atendendo aos danos dela resultantes?
Muitos, ainda, recusam a ideia de que a Constituição fixe tais limites à liberdade de governação, quando da sua alteração pode resultar a “salvação” do país. Rui Medeiros vem até recordar que, já em 1983, o TC admitiu a retroactividade de um imposto excepcional e, ainda mais recentemente, aceitou a reforma da Segurança Social, acabando com expectativas até aí legitimas e, de novo, admitindo efeitos retroactivos. Outros entendem que a redução de salários é de constitucionalidade duvidosa e rebatem com o desrespeito pelos princípios da protecção da confiança e da intangibilidade da retribuição. No caso votado em 2002, o TC não determinou especificamente qualquer limitação à eficácia, o que obrigou o Estado a devolver as remunerações em falta às pessoas afectadas – infelizmente o Dr. Luís Madureira já falecera e não lhe foi feita justiça.
Note-se que o texto constitucional permite, no artigo 282.°, que seja excluída a retroactividade da decisão por “interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado”, o que significa que, ainda que o TC seja chamado a pronunciar-se e declare a inconstitucionalidade das normas orçamentais de que resultam a redução de salários, não é obrigatório que o dinheiro subtraído (ou retido, para se ser mais soft) aos funcionários públicos seja devolvido. Tudo dependerá do entendimento que o TC faça entre a ponderação dos interesses público e privado.
Uma coisa é certa: hoje, o medo não sustém ninguém de reclamar os seus eventuais créditos seja perante quem for, enquanto que, ao tempo daqueloutra retracção sofrida e sobre que se pronunciou o acórdão de 2002, o medo imperava.
O certo é que, quando a Justiça veio, não veio a tempo de fazer Justiça! E, neste aspecto, ambos os casos podem vir a revelar-se idênticos, pela medida da sua injustiça!