O desvio de Cavaco, Isabel Moreira, Expresso
"É tudo a 1 de Junho. Por isso, como na entrada em vigor dos novos truques para despedir, a partir de 1 de Junho cerca de 1 milhão de funcionários públicos, militares, forças de segurança e reformados vão "contribuir" mais. Trata-se do diploma que modifica o valor dos descontos a efetuar para os subsistemas de proteção social no âmbito dos cuidados de saúde, concretamente da Direção-Geral de Proteção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas (ADSE), dos Serviços de Assistência na Doença (SAD) e da Assistência na Doença aos Militares das Forças Armadas (ADM).
Este diploma tem uma história de cumplicidade disfarçada entre aquele que jurou fazer cumprir a Constituição (CRP) e o Governo. Na eloquente exposição de motivos, o Governo recorda o chumbo da convergência das pensões por parte do Tribunal Constitucional (TC) e alega, sem fundamentar, o "nível incomportável de despesa pública atualmente suportado pelo Estado com o sistema público de pensões" explicando, com o rigor habitual, que "as alterações constantes da presente proposta de lei visam que os subsistemas de proteção social no âmbito dos cuidados de saúde sejam autofinanciados, isto é, assentes nas contribuições dos seus beneficiários, contribuindo, também, para a sua autossustentabilidade no médio e longo prazo".
Sem surpresa, a detalhada exposição de motivos omite que as medidas aqui visadas tiveram um percurso que não se resume ao chumbo do diploma da convergência das pensões. Os portugueses, mesmo com este lapso, lembrar-se-ão que o diploma que vai ao bolso de uns quantos funcionários públicos a partir de 1 de junho fora vetado por Cavaco.
Dir-se-ia que Cavaco fez bem. Que agiu.
Erro trágico.
Cavaco, na sua inconsequência intencional, vetou o diploma politicamente, que é um poder do PR quando discorda por razões políticas de um decreto e que pode ser ultrapassado, na AR, por maioria absoluta.
Foi o que o Governo fez, através do PSD e do partido dos pensionistas: usou da prerrogativa constitucional para ultrapassar Cavaco.
Este teria ficado a ranger os dentes, não se tivesse dado o caso de suceder o que ele queria que sucedesse. É que Cavaco fingiu que queria travar o diploma, já que o vetou "politicamente" e não "juridicamente".
Nada de errado haveria na escolha se os fundamentos do veto fossem políticos. Calha que estamos perante um veto político na forma e jurídico na substância. No veto, Cavaco sustentou-o com palavras como estas: "De acordo com o preâmbulo do diploma, a medida visa a autossustentabilidade dos sistemas em causa. Suscita, porém, sérias dúvidas que seja necessário aumentar as contribuições dos 2,5% para 3,5%, para conseguir o objetivo pretendido. Numa altura em que se exigem pesados sacrifícios aos trabalhadores do Estado e pensionistas, com reduções nos salários e nas pensões, tem de ser demonstrada a adequação estrita deste aumento ao objetivo de autossustentabilidade dos respetivos sistemas de saúde (...). Sendo indiscutível que as contribuições para a ADSE, ADM e SAD visam financiar os encargos com esses sistemas de saúde, não parece adequado que o aumento das mesmas vise sobretudo consolidar as contas públicas (...). Neste contexto, o risco de insustentabilidade do sistema será tanto maior quanto mais desproporcionada for a contribuição em relação ao custo dos serviços prestados ou ao peso das contribuições nos salários e pensões, sobretudo num quadro de fortes reduções do rendimento disponível dos trabalhadores do Estado".
Perante esta peça, que tem lá tudo para enviar o diploma do Governo para o TC, Cavaco apelida-a de "veto político", permitindo que o Governo transformasse a iniciativa em proposta de lei num quadro de maioria parlamentar, confirmando o voto por maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções, nos termos da CRP, caso em que a promulgação é, como Cavaco sabe, obrigatória.
É bom que todos saibam que as pessoas que vão ser alvo de mais um ataque obstinado não receberam a punição apenas do Governo e da dupla partidária que o suporta. Esses, quando não mencionaram o veto de Cavaco na detalhada exposição de motivos, não o fizeram porque ele foi bem-vindo.
Tratando-se de um veto "político" e não de um veto "jurídico", ele não pode fundamentar-se em razões jurídicas. Porque o seu regime jurídico, precisamente este a que assistimos com possibilidade de imposição de promulgação após confirmação, destrói a garantia de legalidade.
Cavaco, conscientemente, praticou um desvio à CRP.
As consequências da manobra começam a 1 de Junho."