terça-feira, 15 de abril de 2014

40 anos depois - Comemorar o quê? Senhores, falta cumprir-se Portugal!








Momentos cruciais da vida política passam-se nos "passos perdidos", entre a alcova, a mesa e a bolsa. À revelia do interesse e da voz dos portugueses. As elites dão como certa a conformação e a resignação do povo, adormecido pela escassez, vestida de desemprego, de fome ou de pobreza. O povo, no dizer da elite, não está à altura de assumir as grandes escolhas. A bipolaridade do arco da governação assola o País. Gerou imobilismo. Cimentou a falta de esperança. Mantém um Estado esbanjador. Portugal vive em estado de falso restart. Reina a confusão entre a continuidade e o recomeço, à direita, ao centro e a esquerda. O tal suposto novo restart camufla o equilíbrio draconiano das contas públicas. Sem transparência. É inevitável o cepticismo em relação aos políticos e aos partidos. O futuro de Portugal Livre ultrapassa a discussão da presença da Troika e de ideologias avulsas, marcados por interesses particulares e corporativos. O essencial da questão mantém-se desde há quatro décadas: a escolha de representantes eleitos que obedecem a velhos compromissos de tudo mudar para tudo continuar na mesma. A falta de cidadania levou a que a pomba da liberdade se encarcerasse em belém, a que são bento claudicasse, a que laranja apodrecesse à lapa, a que a rosa murchasse no rato, a liberdade voou para parte incerta, mas para longe do cais das colunas e do porto graal. Um País que se deixa morrer abnegado pela sua margem falsa de conforto, sucumbiu ao paternalismo do poder instalado, avassalou-se a uma vida sem dignidade, preteriu o direito ao sonho. Um restart não chega. Urge ressuscitar. A Portugal falta o pé. Levantar-se. Erguer-se. Faz falta a este portugal o Portugal de todos. Restaurar Portugal sim. Encontrem-se, ao menos, Quarenta Conjurados. 
40 anos depois.
- qual é o maior pesadelo? viver no estertor do marcelismo ou sob dominação estrangeira?
- há 40 anos ninguém aceitava a legitimidade do poder. hoje, a questão da "legitimidade" não se coloca, argumentando muitos que este foi estabelecido pelas mãos do povo nas urnas [como tantas outras ditaduras!]. uma acção insurreccional ou uma ruptura profunda só é permitida, segundo outros, desde que dentro do quadro institucional.
- espoliam-se direitos aos reformados, funcionários públicos e trabalhadores, a coberto de um estado de emergência não declarado pelas vias constitucionais, mas assumido, cá dentro e lá fora.
- contrariamente há 40 anos, o país vive sob a ficção da interdependência, na ausência da soberania vendida.
- se há Liberdade? Liberdade para que liberdades? As que restam.
- rendemo-nos à "democracia" regular pela via da escolha?
- optamos por alternativas "de alterne"!?
Portugueses. 40 anos depois. Portugal sem esperança. Em decadência. A caminho da sua própria irrelevância.
"- A nação é de todos. A nação tem de ser igual para todos. Se não é igual para todos, é que os dirigentes, que se chamam Estado, se tornaram quadrilha. Se não presta ouvido ao que eu penso e não me deixa pensar como quero, se não deixa liberdade aos meus actos, desde que não prejudiquem o vizinho, tornou-se cárcere. Não, os serranos, mil, cinco mil, dez mil, têm tanto direito a ser respeitados como os restantes senhores da comunidade. Era a moral de Cristo: por uma ovelha... Se os sacrificam, cometem uma acção bárbara, e eles estão no direito de se levantar por todos os meios contra tal política." - Aquilino Ribeiro, Quando os Lobos Uivam, 1958

Comemorar o quê? Senhores, falta cumprir-se Portugal!

terça-feira, 8 de abril de 2014

"A Partilha de África, o 31 de Janeiro e a Maçonaria em Portugal”, pelo Prof. Amadeu Carvalho Homem


“Nos finais do século XIX, com os trabalhos pioneiros de etnografia e antropologia de James Frazer, Franz Boas e Malinowski, entre outros, a Europa descobre “o outro”, “o bom selvagem”, “os povos primitivos”,as civilizações de África. Os países industrializados da Europa descobrem outras culturas, outros modos de vida, mas também a importância dos recursos naturais de África, tão necessários ao seu processo de industrialização.
A Alemanha entra nesta “corrida” na segunda metade do século XIX sob a liderança de Bismark e inicia a sua expansão mundial, encorajada pela burguesia nacional, instituindo uma verdadeira política imperialista, conhecida como Welpolitik.
Começa a corrida a África, principalmente, por parte de Inglaterra, França e Alemanha. Esta disputa foi, entre outros, um dos principais factores que esteve na base das causas da Primeira Guerra Mundial.
Em Portugal, Alexandre Herculano profundamente marcado pelos dramáticos acontecimentos da sua época - as invasões francesas, o domínio inglês e o influxo das ideias liberais, vindas sobretudo de França, que conduziriam à Revolução de 1820 - publica a sua História de Portugal.
Leite de Vasconcelos, pioneiro nos estudos de arqueologia, etnografia e antropologia e sociolinguística, publica importantes trabalhos de investigação na procura da essência da portugalidade (Etnologia Portuguesa e Religiões da Lusitânia, entre outros).
Portugal económico, estrutural e espiritualmente exaurido com as invasões francesas, o domínio inglês e as lutas liberais, enfrenta graves dificuldades neste processo de luta pela ocupação de África.
Sob influência do Marquês Sá da Bandeira, entre 1836 e 1865, dá-se uma viragem na política portuguesa para África. O interesse governamental de então pelos territórios africanos depara, no entanto, com a fraca implantação portuguesa no terreno. O interior era mal conhecido, e apenas nas regiões costeiras existiam zonas de ocupação que serviam de meio de escoamento de produtos coloniais.
Nas décadas de 1870 e 1890, verifica-se um aumento do interesse dos países europeus pelo continente africano. A ocupação de vastas zonas do litoral pelos portugueses era um obstáculo às pretensões dos outros países, mas as zonas do interior eram ainda muito pouco conhecidas.
Os problemas políticos e financeiros portugueses facilitaram uma mudança de poderes instalados neste continente e uma alteração da política dominante, que se altera do direito tradicional da prioridade das Descobertas, para um direito de ocupação efectiva, estabelecido internacionalmente na Conferência de Berlim de 1884-1885, convocada por Bismark.
Inicia-se a ocupação do interior de África. Criam-se as sociedades de geografia europeias durante a primeira metade do século XIX, e desenvolvem-se trabalhos de exploração geográfica e científica com ampla divulgação nos periódicos e livros da época. As informações obtidas, apresentadas de forma atractiva, com mapas, imagens exóticas com reprodução da fauna e flora, atraem a atenção de um público cada vez maior. Estas explorações chamam também a atenção dos poderes políticos para as possibilidades de exploração económica das vastas riquezas desse continente e da sua mão-de-obra barata.
Em Portugal, em 10 de Novembro de 1875, um grupo de cerca de 74 subscritores, entre os quais se encontravam os maçons Luciano Cordeiro, Pinheiro Chagas, Sousa Martins, Cândido de Figueiredo e Teófilo Braga, requerem junto do Rei D. Luís a criação da Sociedade de Geografia de Lisboa, com o objectivo de promover e auxiliar o estudo e progresso das ciências geográficas e correlativas, possibilitando deste modo, no contexto do movimento europeu de exploração e colonização, desenvolver um particular contributo na ênfase dada à corrida de exploração do continente africano. Nos primeiros anos da sua existência foi criada a Comissão Nacional Portuguesa de Exploração e Civilização da África, com o objectivo de apoiar cientificamente o esforço colonial português em África, particularmente no contexto da crescente competição europeia na apropriação de territórios naquele continente.
Entre os exploradores europeus mais famosos de então estavam Livingston que traçou os planos do vasto interior africano e Stanley no Congo.
Entre os exploradores portugueses depois de Serpa Pinto, que a cruzou numa complicada expedição e traçou mapas do seu interior, destacaram-se Capelo e Ivens.
Face às mais que previsíveis decisões da Conferência de Berlim era preciso demonstrar a presença portuguesa no interior da África austral, como forma de sustentar as reivindicações constantes do mapa cor-de-rosa entretanto produzido. Para realizar tão importante projecto, são nomeados Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens, que depois de terem sido dados como mortos ou perdidos, por não haver notícias deles durante cerca de um ano, concluem com êxito a expedição. Ao longo de toda a viagem, Roberto Ivens escreve, desenha, faz croquis, levanta cartas; Hermenegildo Capelo recolhe espécimes de plantas, rochas e animais.
A 21 de Junho 1885, é concluída uma nova expedição em Moçambique, em que foram percorridas 4500 milhas geográficas (mais de 8300 km), 1.500 das quais por regiões ignotas, tendo-se feito numerosas determinações geográficas e observações magnéticas e meteorológicas.
Estas expedições, para além de terem permitido fazer várias determinações geográficas, colheitas de fósseis, minerais e de várias colecções de história natural, tiveram como objectivo essencial afirmar a presença portuguesa nos territórios explorados e reivindicar os respectivos direitos de soberania, já que os mesmos se incluíam no famoso mapa cor-de-rosa que delimitava as pretensões portuguesas na África meridional.
O chamado Mapa cor-de-rosa seria o documento representativo da pretensão da soberania de Portugal sobre os territórios sitos entre Angola e Moçambique, nos quais hoje se situam a Zâmbia, o Zimbabwe e o Malawi.
A disputa com a Grã-Bretanha sobre estes territórios levou ao ultimato britânico de 1890, a que Portugal cedeu, causando sérios danos à imagem do governo monárquico português.
A Sociedade de Geografia de Lisboa, defendeu sem sucesso a necessidade de formar uma barreira às intenções expansionistas britânicas que pretendiam a soberania sobre um território que, do Sudão, se prolongasse até ao Cabo pelo interior da África, organizando uma subscrição permanente para manter estações civilizadoras na zona de influência portuguesa do interior do continente, definida num mapa como uma ampla faixa da costa à contra-costa, ligando Angola a Moçambique. Nascia assim, ainda sem sanção oficial, o chamado "Mapa Cor-de-Rosa".
O resultado foi o ultimato britânico de 11 de Janeiro de 1890 sendo exigido a Portugal a retirada de toda a zona disputada sob pena de serem cortadas as relações diplomáticas.
Portugal isolado protestou, mas seguiu-se a inevitável cedência e recuo. E assim acabou o "mapa cor-de-rosa", mas não sem que antes tivesse deixado um legado de humilhação nacional e frustração (bem patente no Finis Patriae de Guerra Junqueiro) que haveria de marcar Portugal durante muitas décadas. Na sequência deste episódio, Alfredo Keil compôs a portuguesa (Hino Nacional Português).
Em resultado desta humilhação nacional, perca de soberania de territórios africanos a favor de Inglaterra e de outras potências estrangeiras, criam-se as bases de sublevação, de afirmação de independência nacional e do espírito republicano no Porto, com a malograda Revolta Republicana do 31 de Janeiro de 1891, liderada pelo Dr. Alves da Veiga.
Portugal apenas recupera a sua auto estima depois da implantação da República em 5 de Outubro de 1910, bem como as suas debilitadas finanças de então.
Neste momento o nosso país encontra-se, igualmente, por razões diversas, perante a humilhação de uma situação de intervenção financeira estrangeira, mas como outrora, com determinação, trabalho e perseverança, estamos certos os portugueses saberão encontrar caminhos de esperança e recuperar a auto-estima e a sua autonomia financeira nacional.» [Fernando Castel-Branco Sacramento - Director do Museu Maçónico Português]

Almada Negreiros, regresso ao Chiado, a visão de António Valdemar - 120 anos depois.



"Irradiando luz, Almada mudou a arte e a Literatura. Mudou Portugal.
«Os 120 anos do nascimento de Almada Negreiros, que agora se completam, têm constituído pretexto para uma série de manifestações e homenagens que abrangem o artista plástico, o poeta, o romancista, o novelista, o dramaturgo, o panfletário e, simultaneamente, o grupo e a geração de Orpheu, a diversidade de percursos e atitudes que, no seu todo, configuram um momento histórico na procura e afirmação da modernidade.
Desde sempre o Chiado e os seus locais mais emblemáticos permanecem associados às múltiplas intervenções de Almada Negreiros. Foi tão íntima e tão longa essa relação física e cultural que do Chiado se poderia dizer que era a sua própria casa, numa Lisboa mergulhada nas guerrilhas da República e numa sociedade imobilizada no seculo XIX e, ao mesmo tempo, com a ambição ilimitada de atingir o mundo para um diálogo com as vanguardas europeias.
Partilhou o Chiado com Sónia e Robert Delaunay, quando se refugiaram em Portugal, a fugir a guerra de 14; com Diaguilew e outras figuras dos Bailados Russos que ao chegarem a Lisboa são apanhados de surpresa com a revolução de Sidónio Pais; também num hotel do Chiado, em 1947, falou com Miró, ao passar por Lisboa a caminho de Nova Iorque. O encontro a que também assistiu António Dacosta ficou registado numa fotografia e no Sempre Fixe, na Fita da Semana, de Carlos Botelho.
O aparecimento de Almada, como desenhador e caricaturista, decorreu em 1912, no 1.º Salão dos Humoristas, uma exposição coletiva no Grémio Literário inaugurada pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga. Em 14 de Abril de 1917 apresentou no São Luís (antigo Teatro República) O Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX – uma explosão de intenções e chicotadas para romper a indiferença e sacudir a rotina. Uma entrega total de energia para mudar o País.
Interveio, no Chiado Terrasse, a 18 de Dezembro de 1921, no Comício dos Novos com Gualdino Gomes a presidir, Aquilino Ribeiro na mesa e, entre a assistência perplexa. Foi outra proclamação futurista contra os modelos dominantes. Expôs na Bobone, uma das raras galerias de Lisboa, com tradições oitocentistas; e depois de regressar de Espanha, nos anos 30, fez uma exposição na UP, uma galeria na rua Serpa Pinto, dirigida por António Pedro, onde Vieira da Silva apresentou os primeiros trabalhos.
A editorial Ática, fundada por Luis de Montalvor, um dos participantes do Orpheu – e autor do título da revista – teve a primeira sede na esquina da rua do Carmo, com a rua Garrett. Ao lançar, a partir de 1942, a obra ortónima e heterónima de Fernando Pessoa, Montalvor colocou na capa de cada volume um desenho de Almada, um Pégaso, símbolo mitológico e vivo da poesia em movimento.
A amizade com Fernando Amado incorporou-o na história do Centro Nacional de Cultura ao debater, em 1946, a “posição do artista na sociedade”. Foi um dos escolhidos para decorar a Brasileira do Chiado que, juntamente com o Bristol Club, introduziu em espaços públicos a consagração da arte moderna.
A Brasileira, quase até ao fim, constituiu um dos lugares de convívio diário. Almada, ali se envolveu numa aguerrida cena de pugilato com José de Bragança, a propósito da prioridade da descoberta das perspectivas dos ladrilhos que reuniu num políptico os dois trípticos dos Painéis de São Vicente de Fora.
E quando não é no Chiado, é nas suas fronteiras que o deparamos, nos seus primórdios ou nos momentos mais exuberantes da sua carreira. Realizou, a primeira exposição individual, em 1913, na Escola Internacional, na rua da Emenda, a dois passos do largo do Calhariz. A Ilustração Portuguesa referiu a exposição, reproduziu alguns desenhos, publicou a fotografia de Almada. O mais importante, contudo, é que atraiu Fernando Pessoa que, escreveu sobre Almada, na revista Águia: “Eu creio que ele tem talento. Basta reparar que ao sorriso do seu lápis, se liga o polimorfismo da sua arte para voltarmos as costas a conceder-lhe inteligência absoluta.” Começou a visibilidade pública de Almada. Mas começou também o convívio e cumplicidade com Pessoa. Abria-se o caminho para o Orpheu. Vai ser ainda no Largo do Calhariz que Almada faz na Liga Naval, em Maio de 1921, a conferência A Invenção do Dia Claro, um ano depois publicada em livro com a chancela da Olisipo, uma das aventuras editoriais de Fernando Pessoa.
Trazia a memória escaldante de Paris. Era uma vedeta da primeira página desde o primeiro número do Diário de Lisboa que principiara há um mês e iria durar 70 anos. Almada desdobrava-se em projetos, no desenho, na ilustração, no cinema, no teatro, na dança, no bailado, no afrontamento, direto com os velhos e com os novos, com os valores, os preconceitos, os códigos morais e as cartilhas estéticas e literárias em circulação.
N’ A Cena do Ódio – escrita quando residia na Rua do Alecrim, outra fronteira do Chiado – está em paralelo com a desconstrução criativa e o furor épico de Álvaro de Campos, mas atinge outra dimensão n’ A Invenção do Dia Claro. Estabeleceu o reencontro da poesia com o desenho e a pintura; aprofundou a reflexão sobre a linguagem e através dela sobre a existência humana. Entre o vivido e o escrito desvenda as geografias que a imaginação concebeu. Quer, a todo o custo, recuperar os afetos perdidos. A atenção dirige-se para a memória e o quotidiano. A palavra é concisa ou pujante: as coisas mais vulgares surgem transfiguradas.
Hoje 7 de Abril, o encerramento do ciclo dos 120 anos do nascimento proporciona, no Grémio Literário, um encontro com a presença e intervenção de alguns que conheceram Almada Negreiros e com ele ainda privaram na intimidade. Também José Quaresma, professor da Faculdade de Belas Artes de Lisboa vai promover, a partir de 6 de Maio, e à semelhança dos últimos cinco anos, um conjunto de iniciativas – em que se destacam a personalidade e a obra de Almada Negreiros e o Chiado – no âmbito da reflexão e da produção artística que problematize as origens e a atualidade da dramaturgia e da performance em estreita relação com as noções de Esfera Pública e de Arte Pública.
Almada regressa ao Chiado, aos seus cafés, aos seus restaurantes, aos seus teatros, aos seus clubes, às suas livrarias, a outras instituições, às suas próprias esquinas a todo aquele universo que, desde sempre integrou as duas faces distintas da arte, da literatura e da vida: a tradição e a rutura, o antagonismo das gerações em conflito. Para Almada o Chiado constituiu a arena dos grandes combates que travou enfrentando tudo e todos. Para derramar e explodir: “Luz, a luz, tal e qual, que é, presença de cada qual”. Com essa irradiação de luz mudou a arte e a Literatura. Mudou Portugal.» Jornalista e investigador, sócio da Academia das Ciências

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Justiça não "negociável"!

A Justiça falece. A Justiça apodrece. Mas o "mercado da justiça" tende a render. A propósito da "negociação" das penas, importa chamar a atenção para alguns pontos. "Negociar" as penas é cavar ainda mais fundo o já ultrajado princípio da igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei. A Constituição, embora claramente "suspensa", estabelece que o Ministério Público exerce a acção penal orientado pelo princípio da legalidade, que está obrigado a dirigir as investigações seguindo critérios de objectividade e que lhe assiste o dever da procura da verdade material do caso. A "negociação" das penas - e assim o confirmam Hollywood e a prática judiciária americana - acaba, na maioria das vezes, por ficar dependente da capacidade/habilidade negocial dos advogados dos arguidos (sendo que quanto maior a capacidade financeira do arguido para custear as despesas com "grandes" advogados maior é a possibilidade de a pena ser "negociada" em moldes mais favoráveis ao arguido), o que me parece agrava o fosso entre ricos e pobres, mais ainda do que actual, desequilibrando os pratos da balança em função do volume de notas de um dos pratos. Um Ministério Público supostamente independente tem a sua actuação circunscrita à lei e ao quadro e poderes nela delimitados, e dependente do controlo no âmbito da função judiciária. A única vinculação do Ministério Público, em princípio, é à tal "verdade material". Num País em que a prescrição já é um fantasma suficientemente diabólico nas mãos de hábeis advogados custeados por ainda mais hábeis arguidos permitir a manipulação da medida da pena, ou a sua não aplicação de todo, é um insulto ao comum dos cidadãos. Permitir que se introduzam factores de negociação das penas dependentes do bolso do arguido é um acto de terrorismo legitimado por um Estado que já pouco tem de "igual" para oferecer aos seus cidadãos. Mais do que terrorismo judiciário, tendo em conta que a medida das penas dos crimes mais graves são as que mais afectam a justiça social, é terrorismo social. Os tribunais deveriam ser o último reduto da Democracia, o último porto seguro dos cidadãos. Não o são, até pelo fantasma da prescrição a coberto de expedientes dilatórios que envergonham a Justiça e a desmerecem aos olhos dos que dela mais precisam e com ela mais contam. Haja diligência, isenção, transparência e independência. Valores não negociáveis, creio eu ainda. AM

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Da cavalaria espiritual e do amor de Pedro e de Inês

«Por que semelhante amor, qual el Rei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguma pessoa, porem disserom os antiigos que nenhum he tam verdadeiramente achado como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. E se alguum disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assim como Adriana e Dido [...] respondesse que nom fallamos em amores compostos [...] mas fallamos daqueles amores que se contam e leem nas estorias, que seu fundamento teem sobre verdade.» [Crónica de Manizola e a Visão de Dona Inês de Anrique da Mota, descrição poética que, com as Trouas ˜q; Garçia de rresende fez a morte de dõa Ynes de Castro, insertas no Cancioneiro Geral, serve de elo de ligação entre os textos cronísticos e a obra de Ferreira. Fernão Lopes, Crónica do Senhor dom Pedro oitavo rei destes regnos, Porto, 1986] "A par das descrições objectivas de Fernão Lopes e Rui de Pina, a Crónica de Manizola enfatiza a beleza de Inês, colo de garça, a sua boa geraçam, a celebração do casamento, que Pedro não confessara, porque a chave deste segredo tinha deitado no mar, os presságios de Inês, a culpa dos conselheiros e a consequente atenuação da de Afonso IV, a união dos enamorados que jazem ambos os dous juntos por que ja que se apartaram na morte ficassem juntos nas sepulturas. Na Crónica de Acenheiro, a idealização da figura de Inês surge filtrada através dos argumentos que aduz em sua defesa, na presença do rei: a sua inocência, a orfandade dos filhos de Pedro e Inês, seus netos, a tristeza que traria ao príncipe a morte da amada." (In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.)

ELEGIA NA SOMBRA (Fernando Pessoa) - Glória a um País no reino das sombras ....


«Lenta, a raça esmorece, e a alegria É como uma memoria de outrem. Passa Um vento frio na nossa nostalgia E a nostalgia torna-se desgraça.
Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar A alma encontra sempre o mesmo muro, E encontra o mesmo muro ao dispertar.
Quem nos roubou a alma? Que bruxedo De que magia incognita e suprema Nos enche as almas de dolencia e medo Nesta hora inutil, apagada e extrema?
Os heroes resplandecem a distancia Num passado impossivel de se ver Com os olhos da fé ou os da ancia.
Lembramos nevoa, sombras a esquecer.
Que crime outrora feito, que peccado Nos impoz esta esteril provação Que é indistinctamente nosso fado Como o pressente nosso coração?
Que victoria maligna conseguimos – Em que guerra, com que armas, com que armada? – Que assim o seu castigo irreal sentimos Collado aos ossos d'esta carne errada?
Terra tam linda com heroes tam grandes, Bom sol universal localizado Pelo melhor calor que aqui expandes, Calor suave e azul só a nós dado – Tanta belleza dada e gloria ida!
Tanta esperança que, depois da gloria, Só conheceu que é facil a descida Das encostas anonymas da historia!
Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguem volta? Do mundo subterraneo Onde a sombria luz por nulla doe, Pesando sobre onde já esteve o craneo, Não restitue Plutão a sob o ceu Um heroe ou o animo que o faz, Como Eurydice dada á dor de Orpheu; Ou restituiu, e olhámos para traz?
Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das maguas, Como nas tardes baças, no mar morto, A dolorosa solidão das aguas.
Povo sem nexo, raça sem supporte, Que, agitada, indecisa, nem repare Em que é raça, e que aguarda a propria morte Como a um comboio expresso que aqui pare.
Torvelinho de duvidas, descrença Da propria conciencia de se a ter, Nada ha em nós que, firme e crente, vença Nossa impossibilidade de querer.
Plagiarios da sombra e do abandono, Registamos, quietos e vazios, Os sonhos que ha antes que venha o somno E o somno inutil que nos deixa frios.
Oh, que ha de ser de nós? Raça que foi Como que um novo sol occidental Que houve por typo o aventureiro e o heroe E outrora teve nome Portugal...
(Falla mais baixo! Deixa a tarde ser Ao menos uma externa quietação Que por ser fóra faça menos doer Nosso descompassado coração.
Falla mais baixo! Somos sem remedio, Salvo se do ermo abysmo onde Deus dorme Nos venha dispertar do nosso tedio Qualquer obscuro sentimento informe.
Silencio quasi! Nada digas! Cala A esperança vazia em que te acho, Patria. Que doença de teu ser se exhala? 
Tu nem sabes dormir. Falla mais baixo!)
Ó incerta manhã de nevoeiro Em que o Rei morto vivo tornará Ao povo ignobil e o fará inteiro – És qualquer coisa que Deus quer ou dá?
Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado, Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lucidos do Fado?
Quando é que sôa, no deserto de alma Que Portugal é hoje, seu sentir, Tua voz, como um balouçar de palma Ao pé do oasis do que possa vir?
Quando é que esta tristeza desconforme Verá, desfeita a tua cerração, Surgir um vulto, no nevoeiro informe, Que nos faça sentir o coração?
Quando? Estagnamos. A melancholia Das horas successivas que a alma tem Enche de tedio a noite, e chega o dia E o tedio augmenta porque o dia vem.
Patria, quem te feriu e envenenou? 
Quem, com suave e maligno fingimento Teu coração supposto socegou Com abundante e inutil alimento?
Quem fez que durmas mais do que dormias?
Que fez que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mãe do meu ser que te ama, que é de ti?
Vives, sim, vives porque não morreste... Mas a vida que vives é um somno Em que indistinctamente o teu ser veste Todos os sambenitos do abandono.
Dorme, ao menos, de vez. O Desejado Talvez não seja mais que um sonho louco De quem, por muito te ter, Patria, amado, Acha que todo o amor por ti é pouco.
Dorme, que eu durmo, só de te saber Presa da inquietação que não tem nome E nem revolta ou ansia sabe ter Nem da esperança sente sede ou fome.
Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos, Colheremos, inuteis e cansados O agasalho do amor que ainda pomos Em ter teus pés gloriosos por amados.
Dorme, mãe Patria, nulla e postergada, E, se um sonho de esperança te surgir, Não creias nelle, porque tudo é nada, E nunca vem aquillo que ha de vir.
Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme, que as palpebras do mundo incerto Baixam solemnes, com a dor que têm, Sobre o mortiço olhar inda disperto.
Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo, Quererias viver eternamente, Ficção eterna ante este espaço mudo Que é um vacuo azul? Dorme, que nada sente, Nem paira mais no ar, que fora almo Se não fora a nossa alma erma e vazia, Que o nosso fado, vento frio e calmo E a tarde de nós mesmos, calma e fria – Como - longinquo sopro altivo e humano! – Essa tarde monotona e serena Em que, ao morrer, o imperador romano Disse: Fui tudo, nada vale a pena.» (2-6-1935) - o quadro representando D. Sebastião é da Gabriela Marques da Costa