quarta-feira, 2 de abril de 2014

ELEGIA NA SOMBRA (Fernando Pessoa) - Glória a um País no reino das sombras ....


«Lenta, a raça esmorece, e a alegria É como uma memoria de outrem. Passa Um vento frio na nossa nostalgia E a nostalgia torna-se desgraça.
Pesa em nós o passado e o futuro.
Dorme em nós o presente. E a sonhar A alma encontra sempre o mesmo muro, E encontra o mesmo muro ao dispertar.
Quem nos roubou a alma? Que bruxedo De que magia incognita e suprema Nos enche as almas de dolencia e medo Nesta hora inutil, apagada e extrema?
Os heroes resplandecem a distancia Num passado impossivel de se ver Com os olhos da fé ou os da ancia.
Lembramos nevoa, sombras a esquecer.
Que crime outrora feito, que peccado Nos impoz esta esteril provação Que é indistinctamente nosso fado Como o pressente nosso coração?
Que victoria maligna conseguimos – Em que guerra, com que armas, com que armada? – Que assim o seu castigo irreal sentimos Collado aos ossos d'esta carne errada?
Terra tam linda com heroes tam grandes, Bom sol universal localizado Pelo melhor calor que aqui expandes, Calor suave e azul só a nós dado – Tanta belleza dada e gloria ida!
Tanta esperança que, depois da gloria, Só conheceu que é facil a descida Das encostas anonymas da historia!
Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?
Ninguem volta? Do mundo subterraneo Onde a sombria luz por nulla doe, Pesando sobre onde já esteve o craneo, Não restitue Plutão a sob o ceu Um heroe ou o animo que o faz, Como Eurydice dada á dor de Orpheu; Ou restituiu, e olhámos para traz?
Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.
Só a prolixa estagnação das maguas, Como nas tardes baças, no mar morto, A dolorosa solidão das aguas.
Povo sem nexo, raça sem supporte, Que, agitada, indecisa, nem repare Em que é raça, e que aguarda a propria morte Como a um comboio expresso que aqui pare.
Torvelinho de duvidas, descrença Da propria conciencia de se a ter, Nada ha em nós que, firme e crente, vença Nossa impossibilidade de querer.
Plagiarios da sombra e do abandono, Registamos, quietos e vazios, Os sonhos que ha antes que venha o somno E o somno inutil que nos deixa frios.
Oh, que ha de ser de nós? Raça que foi Como que um novo sol occidental Que houve por typo o aventureiro e o heroe E outrora teve nome Portugal...
(Falla mais baixo! Deixa a tarde ser Ao menos uma externa quietação Que por ser fóra faça menos doer Nosso descompassado coração.
Falla mais baixo! Somos sem remedio, Salvo se do ermo abysmo onde Deus dorme Nos venha dispertar do nosso tedio Qualquer obscuro sentimento informe.
Silencio quasi! Nada digas! Cala A esperança vazia em que te acho, Patria. Que doença de teu ser se exhala? 
Tu nem sabes dormir. Falla mais baixo!)
Ó incerta manhã de nevoeiro Em que o Rei morto vivo tornará Ao povo ignobil e o fará inteiro – És qualquer coisa que Deus quer ou dá?
Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?
Quando é que vens, do fundo do que é dado, Cumprir teu rito, reabrir teu Templo
Vendando os olhos lucidos do Fado?
Quando é que sôa, no deserto de alma Que Portugal é hoje, seu sentir, Tua voz, como um balouçar de palma Ao pé do oasis do que possa vir?
Quando é que esta tristeza desconforme Verá, desfeita a tua cerração, Surgir um vulto, no nevoeiro informe, Que nos faça sentir o coração?
Quando? Estagnamos. A melancholia Das horas successivas que a alma tem Enche de tedio a noite, e chega o dia E o tedio augmenta porque o dia vem.
Patria, quem te feriu e envenenou? 
Quem, com suave e maligno fingimento Teu coração supposto socegou Com abundante e inutil alimento?
Quem fez que durmas mais do que dormias?
Que fez que jazas mais que até aqui?
Aperto as tuas mãos: como estão frias!
Mãe do meu ser que te ama, que é de ti?
Vives, sim, vives porque não morreste... Mas a vida que vives é um somno Em que indistinctamente o teu ser veste Todos os sambenitos do abandono.
Dorme, ao menos, de vez. O Desejado Talvez não seja mais que um sonho louco De quem, por muito te ter, Patria, amado, Acha que todo o amor por ti é pouco.
Dorme, que eu durmo, só de te saber Presa da inquietação que não tem nome E nem revolta ou ansia sabe ter Nem da esperança sente sede ou fome.
Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos, Colheremos, inuteis e cansados O agasalho do amor que ainda pomos Em ter teus pés gloriosos por amados.
Dorme, mãe Patria, nulla e postergada, E, se um sonho de esperança te surgir, Não creias nelle, porque tudo é nada, E nunca vem aquillo que ha de vir.
Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.
Dorme, que as palpebras do mundo incerto Baixam solemnes, com a dor que têm, Sobre o mortiço olhar inda disperto.
Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo, Quererias viver eternamente, Ficção eterna ante este espaço mudo Que é um vacuo azul? Dorme, que nada sente, Nem paira mais no ar, que fora almo Se não fora a nossa alma erma e vazia, Que o nosso fado, vento frio e calmo E a tarde de nós mesmos, calma e fria – Como - longinquo sopro altivo e humano! – Essa tarde monotona e serena Em que, ao morrer, o imperador romano Disse: Fui tudo, nada vale a pena.» (2-6-1935) - o quadro representando D. Sebastião é da Gabriela Marques da Costa