“Vês estas mãos? Mediram a terra, separaram os minerais e os cereais, fizeram a paz e a guerra, derrubaram as distâncias de todos os mares e rios, e, no entanto, quando te percorrem a ti, pequena, grão de trigo, andorinha, não chegam para abarcar-te, esforçadas alcançam as palomas gémeas que repousam ou voam no teu peito, percorrem as distâncias de tuas pernas, enrolam-se na luz de tua cintura. Para mim és tesouro mais intenso de imensidão que o mar e seus racimos e és branca, és azul e extensa como a terra na vindima. Nesse território, de teus pés à tua fronte, andando, andando, andando, eu passarei a vida.” Assim falava Pablo Neruda.
Sabe-se que o Partido Comunista chileno interpôs a 31 de Maio uma acção judicial em que pediu a abertura de um inquérito à sua morte, depois de testemunhas a terem atribuído a um homicídio ordenado pela ditadura de Pinochet. Julgava-se que - e essa era a versão oficial dos acontecimentos - o escritor e diplomata tinha morrido de um cancro na próstata, numa clínica de Santiago do Chile, onde tinha sido hospitalizado. No início de maio, o antigo secretário e motorista do poeta, Manuel Araya, afirmou que Neruda foi assassinado para que não se tornasse, depois do exílio, num opositor à ditadura de Augusto Pinochet. E conta que, quando esteve à cabeceira deste, nos últimos dias da sua vida, aquele lhe contou que sentiu numa noite uma estranha picada administrada por um médico da clínica. Outro testemunho, o de um antigo embaixador do México no Chile, Gonzalo Martínez, que visitou o poeta na véspera da sua morte, veio forçar a dúvida, afirmando que, segundo o Partido Comunista chileno, Neruda estava longe de um estado clínico crítico.
A acção judicial foi dirigida ao juiz Mario Carroza, que tem a seu cargo a reabertura do inquérito à morte do presidente Salvador Allende, ocorrida no golpe de Estado de 11 de Setembro de 1973, ao qual se seguiu a ditadura de Augusto Pinochet, que durou até 1990. Neruda morreu em 1973, doze dias após o golpe militar que depôs o Presidente Salvador Allende e deu início à ditadura do general Augusto Pinochet, a 11 de Setembro. O juiz aceitou hoje o pedido do PC chileno. O caso vai ser investigado.
Além de Carroza já ter em mãos o processo sobre a morte de Salvador Allende, e outros 700 casos de vítimas da ditadura de Pinochet que nunca passaram pelos tribunais, cai agora sobre os seus ombros o peso de nos elucidar sobre a polémica. Carroza já pediu para ter acesso ao boletim clínico de Neruda e aos exames de controlo que fez na Clínica Alemã de Santiago. Pediu a certidão de óbito e ordenou à polícia de investigação chilena que reúna toda a informação sobre o caso. Tal como aconteceu no caso de Allende, é também possível que seja pedida uma exumação do cadáver.
Resta-nos esperar e acreditar que nem todos os casos que investigam a morte de homens feitos mitos se esvaneça no tempo e nos meandros da Justiça, como aconteceu por cá com Sá Carneiro. É que, às vezes, há quem se aproveite da morte de alguém consciente de que dele nada aproveitariam em vida. E isso deixa-me triste.