segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Isabel Moreira pronuncia-se sobre o stalking [a perseguição de "incómodos" insistentes]


«Sou primeira signatária de um dos projetos de lei (pl nº 659/XII/4ª) em discussão na especialidade que criminaliza a “perseguição”, tradução consensualmente tida por mais correta para o termo que encontramos na Convenção de Istambul (Stalking).
Não é verdade que Portugal tenha acordado para o drama da violência de género em 2014. O contributo da Convenção de Istambul (CI) para esse drama, obrigando os Estados a fazerem muito mais do que alterarem o Código Penal (infelizmente há quem se esqueça disto, mas não as organizações de defesa dos direitos das mulheres) e reforçando uma cultura interpretativa das normas amiga do combate à violência de género, não faz esquecer passos que foram dados e que estão sempre em aperfeiçoamento.
Nos últimos anos, Portugal aprovou medidas importantíssimas no sentido de reforçar a proteção das mulheres face a diferentes tipos de discriminação e violência.
Os cinco planos nacionais de prevenção e combate à violência doméstica e de género aplicados desde 1999 no nosso país e as melhorias introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, e 112/2009, de 16 de setembro, no enquadramento do crime de violência doméstica e no regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e assistência das suas vítimas, consagrando o estatuto da vítima, a natureza urgente dos processos de violência doméstica, a utilização de meios técnicos de controlo à distância dos agressores, a possibilidade de detenção do agressor fora do flagrante delito, o direito das vítimas serem indemnizadas e obterem apoio judicial, médico, social e laboral, são marcas indeléveis de uma vontade política que não esqueço e que está recordada no preâmbulo do projeto de lei.
De resto, quando se fala da CI, concretamente na «Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica», assinada em 11 de maio de 2011, é bom recordar que Portugal não se limitou a ratificar o texto, antes tendo participado ativamente nos trabalhos preparatórios da mesma.
Esta convenção, que entrou em vigor no passado dia 01 de agosto, assume entre os seus vários objetivos, a finalidade cimeira de «proteger as mulheres contra todas formas de violência» exortando os Estados signatários à adoção e aplicação de medidas que permitam o reforço deste desiderato no âmbito da prevenção e do enquadramento jurídico-penal.
No quadro do seu capítulo V, dedicado ao «Direito material», a convenção sugere às partes adotantes, entre várias medidas, a criminalização das situações de «perseguição» (artigo 34.º), vulgarmente identificadas pelo conceito de «stalking».
Vários estudos e dados estatísticos indicam que estamos perante uma realidade incontornável de violência contra as mulheres que, resultando de motivações distintas, merece ser travada e punida tal como já sucede com outras práticas especialmente previstas no direito penal português.
E o que é a perseguição que causa tantas vezes danos psicológicos irreparáveis?
É isto: está identificada com as situações em que alguém, de modo persistente e indesejado, persegue ou assedia outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a perturbar ou constranger, ou a afetar a sua dignidade, provocando medo, inquietação ou prejudicando a sua liberdade de determinação.
A questão da afetação da dignidade é fundamental e “bebida” da legislação laboral, porque estou em crer que há situações de assédio laboral que devem ter cobertura penal.
Note-se que a natureza específica e socialmente complexa deste novo crime, assumido por isso como semipúblico, justifica não obstante, à semelhança do que sucede por exemplo no crime de violência doméstica (artigo 152.º do Código Penal), e a par da moldura penal principal, a previsão de penas assessórias que passam pela proibição de contacto com a vítima com possibilidade de fiscalização por meios de controlo, ou a obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas de perseguição.
Este projeto de lei está, claro, sujeito a aperfeiçoamentos, mas não podemos tolerar a resignação perante milhares e milhares de casos concretos em que para mulheres reais – tantas vezes numa antecâmara do que pode vir a ser mais uma morte em contexto de rutura conjugal – sair à rua, abrir um computador, ligar um telemóvel, falar com alguém, ter uma conta de facebook, numa palavra, existir, se transformou num pesadelo.
A perseguição deve ser um crime e é um crime que funciona a montante de outros.» - Isabel Moreira, "Perseguidas", blogue Maria Capaz