quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O Homem, a Vida e a inevitabilidade da Morte

Alguns amigos suscitaram-me uma reflexão especial que aqui vos deixo. Sobre a vida e a morte. 
Quem não experimentou já a doce tentação de procurar outra vida na morte? Feitos à imagem de Deus, segundo o conceito do Génesis, o direito à felicidade surge como uma emanação desse Deus de amor joanino. Porque hei-de não ter tudo nesta vida se a outra me trará a plenitude que desejo? "O que está preparado para morrer não receia a morte, qualquer que seja, ainda que venha de improviso". (Sto Agostinho)
Por outro lado, a antevisão (ou diria mesmo, a experimentação) da morte pode fazer com que mudemos a nossa vida, como que iniciaticamente, encetando novas atitudes e comportamentos, porque,  a final, ante a visão da morte percebemos o valor inexcedível da vida, tal como a conhecemos e concebemos. “Imaginai que estais vendo uma pessoa que acaba de exalar o último suspiro; considerai esse cadáver deitado ainda no leito, com a cabeça pendida sobre o peito, os cabelos em desalinho banhados ainda nos suores da morte, os olhos encovados, as faces descarnadas, o rosto acinzentado, a língua e os lábios cor de ferro... o corpo frio e pesado. Empalidece e treme quem quer que o vê. Quantas pessoas, à vista de um parente ou de um amigo morto, não mudaram de vida e não deixaram o mundo! (Santo Afonso Maria Ligório)
E que espécie de vida (a havê-la) encontraremos do outro lado? São Francisco de Assis disse: “Louvado sejas, meu Senhor, Por nossa irmã a Morte corporal, Da qual homem algum pode escapar. Ai dos que morrerem em pecado mortal! Felizes os que ela achar Conformes à tua santíssima vontade, Porque a morte segunda não lhes fará mal! Louvai e bendizei ao meu Senhor, E dai-lhe graças, E servi-o com grande humildade.” A que "morte segunda" se refere e porque é que esta não nos fará mal? 
Sartre tentou perceber n'“A Náusea”, a própria existência como um absurdo porque, embora se tenha projetos, sonhos e aspirações, temos também essa consciência da morte, então porque se há-de procurar tão avidamente atingir essa felicidade se um dia deixarei de existir? A existência não tem razões, nem explicações, ela não se justifica por si mesma. Para Sartre, foi o homem que criou Deus e, por isso, já que nele o homem concebe o absoluto, a sua natureza jamais O alcançará. A existência não seria a necessidade de estar vivo mas a de simplesmente estar presente.
E eis a questão: “Sobrevivemos à morte?”
“Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor." Romanos 6:23. Que vida eterna é essa? A de uma existência desmaterializada mas, ainda assim, vivenciada? Seja qual for a resposta a que cheguemos, e lembrando Mandela, diria que: “A morte é inevitável. Quando um homem fez o que considera seu dever para com seu povo e seu país, pode descansar em paz. Acredito ter feito esse esforço, e é por isso, então, que dormirei pela eternidade” - Nelson Mandela
Melhor ainda é a visão de Manuel Bandeira: "O HOMEM E A MORTE - O homem já estava deitado Dentro da noite sem cor. Ia adormecendo, e nisto À porta um golpe soou. Não era pancada forte. Contudo, ele se assustou, Pois nela uma qualquer coisa De pressagio adivinhou. Levantou-se e junto à porta - Quem bate? Ele perguntou. - Sou eu, alguém lhe responde. - Eu quem? Torna. – A Morte sou. Um vulto que bem sabia Pela mente lhe passou: Esqueleto armado de foice Que a mãe lhe um dia levou. Guardou-se de abrir a porta, Antes ao leito voltou, E nele os membros gelados Cobriu, hirto de pavor. Mas a porta, manso, manso, Se foi abrindo e deixou Ver – uma mulher ou anjo? Figura toda banhada De suave luz interior. A luz de quem nesta vida Tudo viu, tudo perdoou. Olhar inefável como De quem ao peito o criou. Sorriso igual ao da amada Que amara com mais amor. - Tu és a Morte? Pergunta. E o Anjo torna: - A Morte sou! Venho trazer-te descanso Do viver que te humilhou. -Imaginava-te feia, Pensava em ti com terror... És mesmo a Morte? Ele insiste. - Sim, torna o Anjo, a Morte sou, Mestra que jamais engana, A tua amiga melhor. E o Anjo foi-se aproximando, A fronte do homem tocou, Com infinita doçura As magras mãos lhe cerrou... Era o carinho inefável De quem ao peito o criou. Era a doçura da amada Que amara com mais amor." 
É um poema maravilhoso que retrata aquela primeira visão da morte a que estamos habituados, o pavor de morrer. Ele não quer abrir a porta ao terrível esqueleto, pelo contrário, refugia-se no leito, negando a morte, recolhendo-se no seu refúgio e conforto. E surpreende-se, finalmente, quando percebe que a morte não é tão terrível quanto supunha. E lá esta ela representada por uma doce mulher, um anjo, quase a imagem de uma mãe, trazendo conforto, carinho e paz por confronto com a vida "passada". Como se os extremos do sentimento com relação à morte pudessem confluir. 
A morte pode até ser as duas coisas ao mesmo tempo. Algo que traz medo pela dissolução e pelo desconhecido, mas inevitável. E se nessa inevitabilidade formos capazes de ver a mãe ou a avó (ou o anjo) que se foram e que nos deram calor e colo, essa segunda imagem dá-nos o refúgio acomodado e sereno para a certeza da vinda da morte.
A morte pode entrar na vida, ou porque a procuramos nós mesmos ou porque ela nos procura. A intensidade do sofrimento e da dor da perda da vida talvez dependa da imagem que cultivemos da morte: a de um anjo negro ou a de um anjo branco. E se for para cairmos nos braços de uma mãe ou de uma avó, pode mesmo a morte vir a ser a melhor vida que já tivemos. Anabela Melão