segunda-feira, 29 de agosto de 2011

"VAI ACABAR MAL", diz Manuel Pinho

"Este conjunto de situações não é fruto do acaso, tem cúmplices e só um cego não vê que é sintoma de um mal grave"

• Manuel Pinho, Vai acabar mal [hoje no suplemento Economia do Expresso]:
    ‘(...) Ainda pior do que a crise da economia é estarmos a assistir a situações indignas para o país que causam repulsa e são impossíveis de explicar a um estrangeiro, por exemplo a venda ao desbarato das empresas do sector da energia e das águas, a transferência de superespiões para empresas privadas e a impunidade dos responsáveis pelo maior escândalo financeiro desde Alves dos Reis. Os portugueses são um povo de brandos costumes, mas por este caminho vão perder a paciência e um dia a coisa acaba mal.
    É uma indignidade Portugal vender a pataco as empresas do sector energético e parte do sector das águas. A venda ao desbarato da ADP, Galp, REN e EDP não vai criar mais concorrência, nem resolver qualquer problema financeiro. Trata-se de uma decisão errada por razões de fundo e conjunturais. Por razões de fundo, porque no mundo inteiro 95% dos recursos hídricos mundiais não são geridos por privados e não há país em que o Estado ou interesses nacionais não tenham grande influência no sector da energia. Não é preciso muita imaginação para ver os cenários dantescos que a médio prazo podem resultar por o Estado sair de sectores que têm uma importância estratégica. Por razões conjunturais, porque não passa pela cabeça de ninguém vender as jóias da coroa quando os mercados estão pelas ruas da amargura.
    Ninguém acreditaria se lhe dissessem que Berlusconi ia vender ao desbarato a Eni, Sarkozy a EDF ou Dilma Rousseff a Petrobras, pois não? Ao contrário do que alguns pensam, Portugal não está a fazer figura de bom aluno, está a fazer a figura do aluno que aceita que lhe coloquem orelhas de burro e, ainda por cima, parece gostar de se exibir com elas em público.
    É uma indignidade Portugal assistir impavidamente à transferência de superespiões na posse de informação confidencial sobre a vida de muitos de nós, para o sector privado — nem numa república das bananas uma situação destas poderia acontecer. Ninguém imagina superespiões da CIA a mudarem-se de armas e bagagens para o “Washington Post”, nem Rupert Murdoch a contratar agentes do MI5 para o “News of the World”. O processo de escutas em que este jornal esteve envolvido já levou 10 pessoas para a cadeia, ao encerramento do jornal e Murdoch a ser impedido de comprar a Sky.
    É uma indignidade Portugal ser incapaz de julgar os autores do maior escândalo financeiro dos últimos 50 anos, que vai provocar um rombo no erário público da ordem do custo do TGV. É escandaloso que no processo de venda do BPN o Estado fique com €1000 milhões de créditos que serão escolhidos pelos novos donos do banco, que aliás não têm culpa nenhuma desta situação. Só faltava que o Estado se prontificasse a ficar com créditos que tenham sido concedidos a acionistas do BPN! Nos Estados Unidos, Bernard Madoff foi condenado a 150 anos de prisão, a mulher e a filha mudaram de nome e o filho suicidou-se.
    Em Portugal, quem provocou um rombo de milhares de milhões de euros no erário público goza de total impunidade. Este conjunto de situações não é fruto do acaso, tem cúmplices e só um cego não vê que é sintoma de um mal grave.’"