domingo, 12 de outubro de 2014

Do “conhece-te a ti mesmo” ao “torna-te o que tu és”: Nietzsche contra Sócrates em Ecce Homo.


A partir de uma passagem interessante da autobiografia do filósofo (Nietzsche), trabalharemos dois imperativos gregos, o “Conhece-te a ti mesmo”, do oráculo de Delfos, e o “Torna-te o que tu és”, do poeta Píndaro. Ambos, quando trabalhados a partir da língua grega, se revelam ipsis verbis, e abordam um aspecto muito caro do pensamento de Nietzsche, porque tratam do movimento, do vir a ser. Essa abordagem é tratada na perspectiva da rivalidade de Nietzsche com Sócrates.
Como compreender a máxima de Píndaro, o «Torna-te o que tu és.»? A frase, além de aparecer no subtítulo da obra em questão, aparece, no trecho mencionado, contraposta à outra máxima grega: a máxima de Delfos, atribuída ao oráculo da cidade de Delfos, mas também atribuída a Sócrates. Esta consciência da ignorância está expressa na frase de Sócrates “Só sei que nada sei” é o que permite aproximarmos a máxima do oráculo - o “conhece-te a ti mesmo”, à figura de Sócrates. Em vez de ignorar a própria ignorância, compraz-se em reconhecê-la. Daí a sua sabedoria.
A palavra grega para conhecimento é Gignosko. A máxima de Delfos assim diz: «Gnosi seautón». A primeira palavra é um verbo. O radical da palavra em questão é gen (ao formar a palavra gignosko, está também ligado a outra palavra: gignomai, vir a ser, tornar-se). Trata-se de uma extensa raiz de palavras, todas ligadas a geração, nascimento, origem, linhagem e família. 
A palavra grega gignosko está ligada ao vir a ser pelo radical gen. O sentido socrático para o conhecimento desliga-se desse vir-a-ser, gignomai. Se entendermos que o gen se refere a tudo que nasce e perece e devém no tempo, a postura socrática está alçada pela possibilidade que negue o tempo e, com isso, negue o vir-a-ser. O conhecimento para Sócrates é o conhecimento da imortalidade da alma: aquilo que é, ou seja, que não nasce nem perece. 
A palavra “tornar” está ligada, através do radical gen, a outro verbo, “conhecer”. 
O radical gen, por sua vez, diz-se de tudo aquilo que nasce e perece. A máxima “torna-te o que tu és” é atribuída a Píndaro (o poeta que cantou as Odes Píticas). O imperativo da sua sentença “torna-te aquilo que és” foi cantado em função das façanhas de um desportista vencedor. 
Então o que é que, além de uma palavra com semântica valiosa para os nossos pensamentos, a máxima de Píndaro nos pretende dizer? 
Terá tudo a ver com o acto heroico. Quem é o herói e como se constitui o acto heroico? 
A sentença: «Genói oíos essí matón», torna-te (faça-se) o que (qual) tu és, – eis aqui o radical gen que tanto nos diz. 
Fica agora mais clara a aproximação entre a sentença de Delfos e a de Píndaro. O verso de Píndaro é quase uma paráfrase do Oráculo. Se relacionarmos a segunda parte de ambas as frases, percebemos que há semelhanças entre o “quem tu és” e o “a ti mesmo”. O subtítulo de Ecce Homo diz o seguinte: «wie man wird was man ist», ou seja, “como alguém se torna o que [se] é”. 
A frase “torna-te o que tu és” não relega a noção de vir-a-ser com algo que nunca é, mas antes, de maneira paradoxal une o ser e o vir-a-ser. O conceito de amor fati é a tradução para essa relação do homem com o destino. Amar o destino nesse sentido não é meramente aceitar o destino, mas jogar com ele. Amar o destino não é querer ser amado, querer para si poder, domínio, força, mas jogar, agir, com o futuro, com o movimento deveniente. É “amar os desacertos da vida, os momentâneos desvios, e vias secundárias”. O devir é, por isso, identificado ao ser, e não separado dele. Essa compreensão aproxima-nos da figura de Heráclito, ao jogo da criança apresentado no fragmento DK 52: “Tempo é criança brincando, jogando; de criança o reinado”. 
Pensar o tempo foi a última e a mais difícil tarefa de Nietzsche. O homem joga com o tempo na medida em que se compreende nele. Jogar é tomar parte do tempo, é querer o tempo. Nas palavras de Ecce Homo, é a citação de Píndaro que sugere a aproximação entre o vir a ser do tornar-se e o que é. Tornar-se o que se é, é a fórmula de Nietzsche para uma filosofia que pensa o futuro no presente. A filosofia de Nietzsche move-se por isso numa compreensão cósmica, em que compete ao homem jogar. A obra especificamente genial sob esse aspecto é Zaratustra que faz referência para o que está por vir, num constante elogio ao movimento “para a frente”. “Não pode a vontade querer para trás; não pode partir o tempo e o desejo do tempo – é esta a mais solitária angústia da vontade” (ZA/ZA, II, “Da Redenção”). Há, contudo, que entender que esse “para a frente” do tempo não é pensado separadamente com a eternidade. Se "Assim falou Zaratustra" e as outras obras de Nietzsche são marcadas pela referência e elogio ao tempo que passa, não esqueçamos que Nietzsche é também um entusiasta do eterno. O eterno e o passageiro, o ser e o devir, o tornar-se e o que é, mostram que Nietzsche não vê o mundo como uma dicotomia irreconciliável, mas como uma produção incessante no tempo. Tempo esse que não depende do homem, mas cuja grandeza deste depende de se identificar àquele A ordem dos acontecimentos não é medida pelo mero possível, distinto do efetivo, nem pela conjectura. Todo o pensamento que joga com conjecturas interpreta o já acontecido como possível de ter sido evitado, logo ele pensa o futuro na mesma medida. 
A ponderação e a conjectura não são conteúdos do pensamento de Nietzsche, pois ele acredita que toda a existência humana ou não humana está situada numa irreversibilidade incalculável e inviolável, que, por vezes, ele denomina de "acaso". A palavra "acaso" denomina o que não tem causa, o que é sem causa. O problema é que Nietzsche apresenta uma compreensão da vida e da existência muito além de um mero acaso, sem cair nas garras da finalidade. Ele eleva a compreensão humana do todo ao patamar do necessário sem determinar o conteúdo ou a causa dessas finalidades, ou seja, sem o destituir da liberdade: “Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra ‘acaso’”. 
Talvez como nota conclusiva seja correta a afirmação de que filosoficamente, Nietzsche, assim como Sócrates, conduziu à aporia todos os saberes humanos. Vale também como afirmação certeira a de que o que se mantém na disposição cósmica da obra de Nietzsche permanece aquela mítica grega, em que as linhas do destino são traçadas e decididas para além da vontade dos homens ou dos próprios deuses. O que equivale a conferir aporia à compreensão humana.
[Do “conhece-te a ti mesmo” ao “torna-te o que tu és”: Nietzsche contra Sócrates em Ecce Homo, Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche – 2º semestre de 2012 – Vol. 5 – nº 2]