O artigo é extenso mas de qualidade. Autoria do meu querido amigo Jorge Silva Carvalho, perito reconhecido nesta área. Fala do 11 de Setembro.
«11 de Setembro
A Mudança induzida pelos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001
Há poucos acontecimentos que, por si, mudam a forma como vivemos, pensamos ou apreendemos a realidade. Assinalou-se este ano o décimo 'terceiro' aniversário de um desses acontecimentos, o ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque. Foi um acontecimento decisivo, um ‘game changer’, não somente pela ignomínia dos crimes cometidos naquele dia mas porque, depois dele, o mundo mudou e não apenas no estrito domínio da segurança nacional e internacional.
Mudou radicalmente a prioridade na luta contra o terrorismo, tendo o problema do terrorismo sido elevado a ameaça principal, ocupando o vazio parcial deixado pelo conflito ideológico da guerra-fria. Desde esse momento passou a ser uma directriz indiscutível para as políticas externas dos diferentes países, em particular os do mundo ocidental. Em parte, por força desse dia foram iniciados conflitos, que ainda hoje continuam bem vivos e com efeitos globais, tais como o Iraque, o Afeganistão, etc..
Mudaram as políticas de segurança nacional, em particular na sua vertente de segurança interna, tendo os próprios conceitos sido testados ao limite. Restringiram-se liberdades fundamentais, na medida em que muitos países introduziram legislação que mudou o conceito de direito de opinião e mudou o conceito de liberdade religiosa. Mudou o léxico sobre terrorismo e islamismo, tendo aumentado os estudos sobre religião em geral e sobre o islamismo em particular. Abriram-se novos debates e outros mudaram radicalmente, nomeadamente sobre o multiculturalismo e imigração. Mudaram, por adaptação e especialização, as forças militares e de segurança para este novo combate. Mudaram os ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais, as regras da cooperação judiciária, as regras de cooperação policial e de informações.
Em Portugal, em particular, país costumeiramente avesso à cooperação institucional, o princípio do combate terrorismo mudou radicalmente o espírito e a praxis de cooperação entre forças armadas, forças e serviços de segurança.
Mas sobretudo mudaram os comportamentos. As regras de segurança protectiva, em geral, mudaram tão profundamente que alteraram totalmente o modo de circulação internacional de pessoas e bens. Mudou o controlo de passageiros, mudou o comércio internacional de bens. Mudou a atenção sobre infra-estruturas críticas afectando quer as que eram propriedade dos Estados, quer as de propriedade privada. Os Estados foram forçados a investir fortemente nestes sectores tal como as empresas privadas.
O 11 de Setembro, apesar da sua aparente reduzida dimensão, quando comparado com outros conflitos ou actos criminosos e violentos, teve um impacto que mudou globalmente o mundo numa geração e constituiu, assim, um caso paradigmático da necessidade de dar a maior atenção a duas temáticas que são, actualmente, imprescindíveis na gestão da actividade pública, dos Estados, e na gestão da actividade privada, das empresas, a Gestão da Mudança e o Conhecimento, em particular o Conhecimento numa perspectiva exógena, de inteligência estratégica.
Vivemos numa era de globalização quase absoluta da actividade económica e financeira. As noções de mercado local, regional ou nacional perderam muita da sua importância pela tripla via da internacionalização generalizada das empresas, dos processos políticos e legislativos de integração de mercados económicos e financeiros e do desenvolvimento da sociedade da informação.
Desta complexidade da envolvente resulta um elevado risco. Num ambiente macroeconómico tudo menos optimista, eventos com o impacto do 11 de Setembro podem, para além da mudança já referida, induzir mais restrições num factor já muito afectado pela crise económica e financeira, a confiança dos mercados.
Por estes motivos, os processos de mudança, como os que foram induzidos pelo 11 de Setembro têm de ser geridos em colaboração e em interacção permanente entre Estados mas, também, no seio dos diferentes Estados, entre os actores públicos e privados, numa perspectiva securitária mas, também, numa perspectiva de protecção dos interesses nacionais.
Essa colaboração é obviamente pautada pelo interesse nacional e, em particular pelo interesse público que, infelizmente, no momento actual e nas áreas mais insuspeitas, muitos confundem com interesse ‘do público’, pela forma pública como actos reservados do funcionamento do Estado têm de ser forçosamente expostos nos ‘media’. Assim, por exemplo na questão tão debatida - sempre muito mal debatida, diga-se -, da cooperação, da colaboração ou do apoio dos serviços de informações a empresas públicas ou privadas, é de referir que existe um princípio, à luz do qual essa questão deve ser equacionada, o do interesse estratégico da empresa para o Estado.
A questão que se deve colocar é qual o critério para a definição de interesse estratégico. Uma empresa pode ser detentora de uma infra-estrutura crítica, pode ter um papel fundamental em sectores vitais para o Estado, sectores esses que podem variar consoante o momento, por exemplo, em plena crise financeira, a Banca é claramente um sector estratégico, enquanto que numa crise sanitária ou de saúde, a indústria farmacêutica e uma empresa farmacêutica pode passar a sê-lo. Mas essa relação pode, também, ser mais unilateral e uma empresa ser estratégica para o Estado para a prossecução dos interesses deste em matérias de política externa, de segurança nacional ou na simples facilitação da acção instrumental de determinados órgãos do Estado, como por exemplo os serviços de informações, sem que a própria empresa tenha disso conhecimento ou, tendo, nada ganhe com isso.
Neste caminho, pós-11 de Setembro, cometeram-se muitos erros, aqui e além talvez demasiados. Há sempre aproveitamentos, para concentrar poderes, para enriquecer de forma ilícita, mas, em geral, hoje estamos incomparavelmente melhores em todos os aspectos já referidos.
É de lamentar que Portugal tivesse, em termos de estrutura organizacional e em matéria de competências das estruturas de combate ao terrorismo, ficado aquém do ideal e, até, do necessário tendo, em alguns casos, os interesses corporativos prevalecido sobre o interesse nacional!
No entanto, hoje, os países em geral, os ocidentais em particular e sobretudo Portugal, estão mais competentes e sofisticados em termos da sua estrutura de segurança e informações e do respectivo funcionamento.
Esta evolução positiva tem sido algo comprometida pelo conjunto de medidas restritivas em termos orçamentais no sector público, avulsas e inconsequentes porque não pensadas estrategicamente, verificadas, pelo menos, nos últimos quatro anos e, em particular, nos últimos dois anos. Se a crise financeira aconselhava, e criava uma janela de oportunidade para a reforma neste sector do Estado optou-se antes por evitar e adiar decisões, preferindo-se uma lógica de cortes orçamentais sucessivos, insignificantes quando isoladamente considerados, mas que, cumulativamente prejudicam de forma inexorável a capacidade de funcionamento de um conjunto de serviços necessários e essenciais do Estado, mantendo-se ficcionadamente uma estrutura que, não só o país não pode, no contexto actual, suportar, como mantém muitos dos vícios de sempre.
Acresce que, esta situação foi exacerbada por algum excesso de conservadorismo na separação ente sector público e privado, em alguns casos ideologicamente justificado noutros apenas motivados por puro oportunismo político, e até, por algum enquistamento conceptual e falta de cultura cívica, que perpassa por vários sectores da sociedade, da política às magistraturas.
Enfim, pessoalmente, tive a oportunidade de participar, nacional e internacionalmente, de forma directa ou indirecta, em quase todas as alterações referidas. O período de 2001 a 2010, foram anos duros e muito trabalhosos, mas profundamente recompensadores, dos quais guardarei muitas e boas recordações!
Todos os anos, neste dia, recordo-me disto tudo e todos os anos, neste dia, penso nas pessoas que morreram naquele fatídico dia 11 de Setembro.
Faço por recordar para, em última análise, me recordar porque é que temos de ter um serviço público eficaz, em particular serviços de informações e forças de segurança eficazes e não apenas instituições 'faz-de-conta'. É que o Estado emana da sociedade, sociedade essa que é constituída por pessoas individuais e colectivas que merecem ser protegidas com eficácia.
Assim, é necessário ter a perfeita noção de que estas mudanças são inevitáveis. Acontecimentos como o 11 de Setembro são inevitáveis, mesmo quando queremos acreditar ou quando nos querem fazer acreditar que não. A preparação é fundamental para antecipar a Mudança ou para a liderar o melhor possível.» Artigo escrito em Setembro de 2013 e publicado pela revista Plano.