O Ideal Português como Ideal para o Mundo, de Agostinho da Silva (Portugal)
"Três pontos, segundo Camões, sobre os quais temos que meditar, e ver como é. Ponto número 1: é preciso que os corpos se apaziguem para que a cabeça possa estar livre para entender o mundo à volta. Enquanto nós estamos perturbados com existir um corpo que temos que alimentar, temos que fartar, que temos de tratar o melhor possível, cometendo para isso muitas coisas extremamente difíceis, nessa altura, quando a nossa cabeça estiver inteiramente livre e límpida, nós podemos ouvir aquilo que Camões chama «a voz da deusa». E que faz a voz da deusa? Arranca àqueles marinheiros as limitações do tempo e as limitações do espaço. Arranca-os às limitações do tempo o que faz que eles saibam qual vai ser o futuro de Portugal. E arranca-os às limitações do espaço porque eles vêem todo o mundo ao longe, o universo que está ao longe, a deusa lho mostra, embora com o sistema errado, digamos assim, ou imperfeito, de Ptolomeu, e eles estão portanto inteiramente fora do espaço. Aquilo que foi o ideal dos gregos, e que os gregos nunca conseguiram realizar. Então o que é que aconteceu? Aconteceu que um dia houve outro português que tinha ido para o Brasil, ponto a que foram muitos portugueses porque lhes era insuportável aquilo que Portugal se tornara para poderem levar a Europa ao mundo, o menino António Vieira foi ao Brasil, cresceu no Brasil, abrasileirou-se, se assim quiser usar a expressão, e é possível que ele um dia tivesse lido o poema de Camões e tivesse lido a ilha dos amores, e dissesse: as três ideias do Camões são hoje fundamentais; o apaziguar do corpo, aquilo que é sano como corpo, termos a nossa cabeça bem aberta, bem livre do pesadelo que tantas vezes nos dá a nossa vida quotidiana, para que possamos ouvir a voz da deusa, dizia o Camões, mas o António Vieira, que se fizera jesuíta, diz que se trata de ouvir a voz de Deus. E então ele diz, para apaziguar o corpo eu tenho outros métodos, que eram naturalmente os métodos que se usavam na companhia, a meditação dos textos sagrados, os jejuns, a chibatada se era preciso chibatar-se a si próprio, etc, para que realmente da mesma maneira, a cabeça se torne limpa, e nós possamos ouvir, diz agora o Vieira, a voz de Deus, o qual me vai mostrar as coisas fundamentais do mundo, me vai fazer ultrapassar o tempo e o espaço, me vai provavelmente fazer ultrapassar esse problema de se há liberdade, se há destino, para ele chegar áquele ponto onde liberdade e destino estão inteiramente conjuntos e avançou sobre o Camões. Porque o grande defeito de Camões foi contar o que se passava na ilha dos amores mas não tira conclusão nenhuma. Nenhuma. Termina logo o poema. Ele não diz o que fizeram esses marinheiros depois de ter aquela experiência extraordinária de ter vivido na ilha dos amores. Chegaram a Lisboa e que é que fizeram? Não se sabe de nada, Camões estava cansado, já não podia cantar mais coisa nenhuma, não mais musa não mais, e ficamos por aí. Com o Vieira não aconteceu assim. Quando ele pensou à sua maneira uma ilha dos amores, ele disse agora aquilo que eu pensei e pus nos mesmos três pontos essenciais que pôs o Camões, agora isso deve servir para o mundo inteiro. Homem porque é homem, terá sempre como ideal apaziguar o corpo, ter a cabeça livre de pesadelos, para poder ouvir o quê? E já não se podia dizer a voz da deusa nem a voz de deus. A voz do universo. Entender o que o universo é na sua essência. Podemos nós pensar outra vez na ilha dos amores? Claro que sim. Podemos nós pensar, por exemplo, pedirmos a uma pessoa da rua, o que é que ela precisa para apaziguar o seu corpo, ela vai logo mexer num ponto da economia qualquer. É preciso, para que essa ilha dos amores possa existir, que o homem possa entender que o capitalismo existe, não para ficar continuamente, tendo mais lucro, contando mais juros, e pagando mais divídas pedindo mais dinheiro emprestado, mas terminar num ponto em que a economia desapareça completamente, em que haja tudo para todos. Primeiro ponto. Segundo ponto: que aí o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo, ser poeta do mundo, e o mundo poeta para ele, de tal maneira que nunca mais ninguém se preocupe com fazer tal ou tal obra, mas por ser tal ou tal objecto no mundo, a identidade dele, a única. O ser único que existe no mundo entre os tais biliões de seres que pelo mundo existem. Então isso aí é alguma coisa que muita gente hoje pode ter como ideal. Muita gente tem como ideal e toda a gente, podemos dizer, tem como ideal. Com um feitio, com outro feitio, de uma maneira, ou de outra maneira, e que talvez realmente um dia tome conta de todo o mundo. " Agostinho da Silva, in 'Entrevista'