sábado, 20 de fevereiro de 2010

O mais velho Livro do Amor: O Cântico dos Cãnticos!


Faz parte do Velho Testamento, mas é tido como um dos livros de maior sensualidade e romance. É o Cântico dos Cânticos. Oito capítulos do Cântico dos Cânticos emanam erotismo, descrições apaixonadas dos amantes - e uma única menção, como nota de rodapé, ao nome de Deus.
É difícil de explicar que este livro, pouco lido, quase esquecido, integre as Sagradas Escrituras judaico-cristãs. Porque põe em causa a importância do homem na vida e nas próprias relações de afecto. "Para quem tenha uma visão da Bíblia com a masculinidade como centro, isso pode chegar a ser até escandaloso. Os homens participaram, no começo, como complemento", diz Humberto Gonçalves. O especialista anglicano admite que tenham sido mulheres a escrevê-lo. Mas a sensualidade do poema também pode ser um sinal da influência da espiritualidade pagã nos israelitas em épocas mais antigas, já que estes adoravam deusas em rituais de fertilidade, o que explicaria em parte a importância feminina no Cântico.
Há quem diga que a sensualidade vem de Salomão, que, segundo a tradição israelita, amou muitas mulheres e tinha um grande gosto pela literatura. E que o nome dos Cânticos (de Salomão) se deve à sua autoria. Para além de ser um inveterado amante, Salomão nasceu das loucuras de amor entre o rei David e Betsabéia, que era uma mulher casada. Pelo que a proibição desse amor teria inflamado o sentimento dos amantes. Admite-se ainda que o Cântico dos Cânticos (ou Cantares de Salomão como também é conhecido o texto) provenha de poemas nupciais cujo ritual durava sete dias.
Seja como for, o Canticum Canticorum ou Canticum Salomonis é um texto poético de linguagem fortemente figurativa e sugestiva, com uma história romântica que decorre em Jerusalém ou nos seus arredores, em plena Primavera.
Mas há também quem justifique a passionalidade da linguagem com uma interpretação não realista da história que parece contar. Há quem diga que as interpretações medievais do conteúdo literário do Cântico dos Cânticos, tanto as talmúdicas (judaicas) como as dos cristãos, remetem para uma interpretação alegórica que se afasta do erotismo que o poema evoca. Assim, as duas leituras mais usuais do Cântico dos Cânticos interpretam-no: como uma metáfora do relacionamento do povo hebreu com o seu Deus, através da união de dois amantes numa relação livre e desprovida de culpa; como a descrição de um quadro que remete para uma relação sensual do amor entre dois jovens amantes.
A força das palavras do Cântico dos Cânticos - tal como aconteceu com a Arte de Amar (Ars Amatoria) de Ovídio foram, em tempos idos, os livros de mesa-de-cabeceira de damas e cavalheiros... (A Arte de Amar, obra de conteúdo arejado, foi particularmente apreciada na Antiguidade. No período medieval a sua leitura foi feita sobretudo às escondidas, sendo de novo valorizada a partir do Renascimento. “Compósita mistura de Bíblia profana, de Manual de Bordo e de Livro de Cozinha para uso dos aprendizes do amor, a Arte de Amar tem vivido clandestinamente sob o alçado de escrivaninhas devotas, ocupado os mais secretos lugares no topo das estantes mais veneráveis, transitado de mão em mão sob a capa de sucessivas gerações de estudantes, pernoitado em celas de conventos e em celas de prisões, em castelos, em palácios e em estalagens, em boudoirs de cocottes e em tendas de campanha, em bordéis, em solares, em escolas, em beliches de transatlântico e em compartimentos de caminho de ferro...” – é David Mourão-Ferreira quem o assegura no prefácio a uma versão que procura obedecer mais a certos ritmos internos do que a uma opressiva literalidade. Em 1969, numa ardência de época, ele e Natália Correia ofereciam-nos o mote, que será provavelmente o maior mote, do amor (tradução): Despoja-te do orgulho se queres ser amado longo tempo.
Pode ainda tentar-se uma aproximação com símbolos e significados para além do Cristianismo, daí o conjunto dos livros do A.T., a divisão em 5 poemas (1,5-2,7; 2.8-3,5; 3,6-5,8; 5,9-8,4 e 8,5-14), tal como os 5 livros dos salmos e também com os 5 livros da Torah.
Mas prefiro vê-lo a olho nu, apenas como um belo poema de amor. Tem tudo para o ser: a excitação que os amantes sentem quando estão juntos (Ct 3.4, 7.6-12); as dificuldades que têm que enfrentar para fugir à vigilância repressora das autoridades e do povo; os encontros marcados em lugares discretos/secretos (7.12-13); as descrições do corpo do amado com pormenores ardentes e eróticos (5.10-16; 6.4-10; 7.2-10); a alegria do encontro (4.9); ao ouvir a voz do outro (2.8); quando se tocam (2.6); quando se beijam (1.2); e a memória do interlúdio do amor (7.11-14).
Só vale a pena amar quando se ama assim. "Teu umbigo [...] esta taça redonda onde o vinho nunca falta. Teu ventre, monte de trigo rodeado de açucenas. Teus seios, dois filhotes filhos gêmeos da gazela” (Ct 7.2-3). "Como a macieira entre as árvores dos bosques/Assim é meu amado entre os moços/À sombra de quem eu tanto desejara me sentei/E seu fruto é doce ao meu paladar/Ele me introduziu na sua adega/E a sua bandeira sobre mim é Amor!". "O amor é tão poderoso como a morte; e a paixão é tão forte como a sepultura. O amor e a paixão explodem em chamas e queimam como um fogo furioso. Nenhuma quantidade de água pode apagar o amor, e nenhum rio pode afogá-lo (Ct 8. 6b-7a)". "Tua fronte por trás do véu/É como uma romã aberta/Teu pescoço é como a Torre de David/Da qual pendem mil escudos/Teus seios são como dois filhotes gémeos de gazela/Pastando entre os lírios".
Do Génesis ao Habacuque, de Mateus ao Apocalipse (São João/Revelação), a Bíblia é um livro para ler sem dogmas, sem pré-adquiridos, mas com o coração, o espírito e a alma abertos. Para quem a supunha de leitura maçadora, este pode ser um desafio para desfrutar os Cânticos.
Com os Cânticos, recupera-se a dimensão da vida, as cores e o cheiro da terra, o paladar dos frutos, o aroma das flores, a frescura da relva, o som da água do riacho. Um arco-íris de tons. Um banquete de especiarias. O lugar do encontro. Os abraços intensos. A emoção do amor. Neles, o critério da dimensão divina do ser humano é a própria sensualidade do(s) corpo(s). E o corpo inteiro é uma obra gloriosa. É todo erótico. É sagrado. Não é profano. É o Templo da vida.