domingo, 20 de novembro de 2011

Da servidão às palavras livres - Baptista Bastos

Do conceito de servidão às palavras que se querem livres, por Baptista Bastos, Jornal de Negócios
"A troika está muito contente com a obediência do Governo português às exigências que lhe foram feitas, adicionando aos aplausos uns rebuçados pelos exageros verificados. E o Governo muito contente está em ser como é. O Governo é, não só um submisso acatador das ordens, como um dócil servidor de regras que nada têm a ver com a cultura e a idiossincrasia portuguesas. Já foi dito e redito. Mas o conceito de servidão associa-se a uma espécie de desejo oculto de submissão. O facto de o Governo ter excedido as normas e ter ido muito mais além do estipulado, não abona a conformidade que o devia orientar. Porque, não o esqueçamos, o Governo decide por si, mas representa o País.
O carácter relacional do poder é muito complexo, e permite que, amiúde, o povo vá atrás do que lhe é nocivo. Maquiavel analisou a dependência recíproca do príncipe e dos seus súbditos. Tem acontecido o fenómeno na nossa história. Demasiadas vezes, no meu entender. O desejo de mando está relacionado com a indulgência e a resignação com que ele é aceite pelos comandados.
A troika veio e manifestou intensa alegria pela subordinação do Governo. Os sorrisos eram amplos, escancarados, muito felizes. Aconteça o que acontecer, há uma unidade substancial que foi desfeita. Claro que, cada vez mais acentuada, se demonstra uma erosão das convicções e da autoridade na sociedade democrática. Mas são os próprios Governos que têm abdicado de exercer o poder para que foram mandatados. Evidentemente, uma abdicação desta natureza e com este conteúdo tão significativo, não consegue mobilizar ninguém. Ainda por cima, estamos sujeitos a decisões de "austeridade" notoriamente unilaterais. As grandes fortunas nem sequer são beliscadas, quando as leis da equidade deveriam ser aplicadas com rigor e exigência. Mas este Executivo, não o esqueçamos, ausentou-se das funções comuns a uma sociedade verdadeiramente democrática. E aí reside a questão fundamental: esta democracia existe como tal, ou é, de facto, uma "democracia de superfície"?, destinada a favorecer e a proteger os mais poderosos, a fim de os encaminhar para as zonas de decisão?
Os padrões sociais, que constituem a razão de ser de uma nação, estão praticamente dissolvidos. Este Governo, em vez de procurar estabelecer uma inscrição de progresso no corpo da sua própria intenção, decidiu avançar para um empreendimento de liquidação social. Entrou em beligerância violenta com os sectores da sociedade cujas condições pareciam asseguradas, desde há décadas, devido a lutas tenazes e frequentemente heróicas contra a selvajaria das classes possidentes. A selvajaria está a regressar. Com o regozijo não dissimulado das associações patronais.
O "mercado" e a desregulação, mesmo sem fazermos uma leitura exclusivamente económica do mundo, põem em questão, e em perigo, o próprio sistema que dizem defender. O que estamos a assistir é ao estrebuchar de uma sociedade que eliminou qualquer expressão de justiça, e que tem liquidado todas as manifestações de repúdio e de contestação. Claro que este estado de coisas não pode continuar. E já há muitos indícios da verdadeira dimensão do protesto. Em Portugal, as coisas acontecerão, podem ter a certeza. Só um tolo ou um fanático as não prevê. "